Tuesday, January 31, 2006

O prazer dos textos

Em lugar de destaque a simbologia.
Por dentro os relatos, os registos de eventos e de procedimentos.
Em narrações históricas onde se conciliavam o registo individual e o colectivo – as crónicas – fazia-se passar o natural carácter didáctico de eventos heróicos, deixando-se testemunhos escritos para outros tempos. Eram essas narrações redigidas segundo uma ordem cronológica e visando já a divulgação própria de quem não queria que os factos caíssem no esquecimento – fazia-se a História.
Efectivamente, neste período os cronistas afirmam a grande importância do registo do que viram ou ouviram, sendo este um dos vectores das narrativas produzidas.
Importante é a procura de um tipo de discurso histórico de um exacto momento – aquele presente – bem como a verificação de uma eventual transmutação das imagens construídas, noutros tempos – os presentes vindouros.
É, pois, uma tarefa deslumbrante, desvendar o discurso historiográfico de um tempo procurando desmontar a construção feita nesse presente. Tudo feito noutro presente.
O difícil é pensarmo-nos fora das estruturas actuais do nosso pensamento.
A dificuldade pode ser essa.

É ainda o prazer do texto.

Saturday, January 28, 2006

Inspiração sobre aguarelas


Trouxe-te de novo as cores, amiga. E aproveitei as circunstâncias (as minhas, que de outras não sei) para umas palavras que hoje nada têm de belo.
É natural (e desejável) que daqui a dias venha mudar o registo.

Gostei de ver as Aguarelas de Turner no novo espaço.




(Picasso)


Primeiro vão querer ver-te inteira. E saber como a tua forma te enforma.
Depois dirão que podes ser mais do que uma. Di-lo-ão sem que ouças. Mas é pior porque começas a temer que a exigência te ultrapasse.
Muito cedo serás tu a exigir. Dirás para ti, também sem que te ouças:
Multiplica-te, diversifica-te, geometriza os teus papéis e decalca-te neles pintando com cores discretas as margens de cada um.
Divide-te, desintegra-te, distribui abraços, dá os braços, reparte as mãos por quem te solicita, agita e parte o tempo.
Esconde-te, resguarda-te, espreita, aproveita o recato e observa. Não te mostres sem que te desejem.
...
Dir-te-ão sempre que foi insuficiente.


Em todas as circunstâncias colocarás a fasquia acima da tua cabeça.

Dirás sempre que foi insuficiente.

Wednesday, January 25, 2006

O Lugar do Morto

O Ivar demorou uns dias mas valeu a pena. Aqui fica um texto... sobre cadeiras vazias...


Há muito que Helena percebeu que não sabe escrever, mesmo quando escreve muito, e que é a escrita que se escreve a ela mesma. Escreve uma frase e dai nascem duas, depois quatro, depois oito. Até recomeçar o processo inverso e as frases começarem a rarear. No fim é raro reconhecer-se num texto mas, não sabe muito bem porquê, costuma ter vergonha de o dizer.

Quando Pedro morreu disse-lhe olá. Depois calou-se para sempre. Helena lembra-se que os cheiros das coisas para onde olhava preenchiam o silêncio que veio depois: as maçãs verdes amontoadas numa fruteira de verga, uma mosca insistindo contra o vidro, um cigarro mal fumado num copo de iogurte improvisando um cinzeiro. Depois achou que as coisas são cruéis, porque ficam a fazer troça de nós quando morrem as pessoas que os usaram.

Olá, vou a conduzir, tenho que desligar. Foi o que ele disse. Ela insistiu com um suspiro e explicou-lhe que não sabia escrever, depois ouviu um estrondo, e depois veio o silêncio e os cheiros das coisas. Mais tarde alguém lhe explicou que o carro foi esmagado por um camião que transportava porcos, e que os porcos povoaram a estrada depois do embate, e que chegaram a comer parte do cadáver. Helena desligou. Desligou-se dos dias. Ela não ia no lugar do morto porque tinha adormecido. Só por isso.

Hoje a madrugada veio mais de mansinho, e aconchegou-lhe os lençóis quando ela acordou. Depois segredou-lhe que lá fora existe um ainda. Ainda beijos embrulham de cores a amargura dos dias, ainda os insectos se encostam ao calor dos intermitentes candeeiros públicos, ainda o álcool mantém longas conversas com um desses candeeiros que ainda se mantém de pé. Ainda adolescentes passam cabisbaixos pelas prostitutas da rua, que ainda ajeitam o cabelo antes de abordarem automóveis que encostam devagar, que ainda desligam os faróis quando viram para o deserto noctívago que povoa um campo de futebol abandonado. Quando Pedro morreu disse-lhe olá. Quando Pedro morreu a madrugada seguinte não lhe disse nada.

Hoje a madrugada veio mais de mansinho, e segredou-lhe que as flores do muro se alongam sobre as cadeiras onde ambos escreviam futuros incertos. Depois pediu-lhe para se sentar numa delas. A outra ficará vazia, talvez porque seja um lugar do morto, talvez porque ele tenha apenas adormecido.



E para terminar esta série de textos "emprestados" aqui fica o texto da Hipátia, do Voz em Fuga:

No país dos sonhos, estavam sentados lado a lado e falavam de tudo com bonomia. Amordaçavam o espaço que os separava com grinaldas de sorrisos e contavam segredos como se nada os fizesse divergir.
No país dos sonhos, ouviam Jorge Palma a falar da terra que há-de ser sobre a terra que nunca pode vir. E alimentavam-se de palavras, que eram sempre o bastante para encher a barriga e não havia contas, nem filhos, nem patrões, nem desconcertos e desgovernos e eleições. E ficavam na terra dos sonhos sempre que queriam fugir. Estão lá ainda, lado a lado, sentados nas suas cadeiras brancas, a ver a manhã branca a florir radiosa nos seus tinta graus à sombra e o chapéu de sol emprestado pela vizinha. Fugiram para lá ontem e não querem regressar.
No hoje, há uma mesa de permeio e uma zanga sem fim. E há contas para pagar e desgovernos e inflação. E faz frio. Demasiado frio para ainda sobreviverem os sonhos.

Monday, January 23, 2006

(Meu) Canto negro


A minha glória é esta
Criar desumanidades
Não acompanhar ninguém


(José Régio, Cântico negro)


Glória sinistra, gémea da minha
Glória que se cola à pele em dias frios
Sibilando loucuras
E em segredo, ainda, espanta como um facho ardente
Que ninguém viu;
Glória de estar sentada em jardins
Que me nascem dos olhos
Colhendo personagens como pétalas de bem-querer
Em canteiros de dupla face;
Glória invertida, a minha
Enfiada num umbigo sem asas
A fingir que voa
Glória rasa, réptil, repugnante.

Ah, mas não vou por aí.
Nunca esperes por mim
Que o meu caminho escapa-se sempre por um triz;
A minha glória é esta. Desumana.


Não quero ir com o vento...


Venho aqui redimir-me de ter falado em mudanças no post de ontem.
Ou antes, estava tudo certo quanto ao rumo porque o pedi de sentido novo.
E certo, ainda, porque me apetece soltar as asas e as amarras. As minhas próprias.

Mas não quero ir com o vento quando ele me é imposto!
Eu não votei nele!

Saturday, January 21, 2006

Histórias com Vento

Conta-me histórias de marinheiros
Que tenho os olhos presos no mar
Mar de mudanças
Sobre as lembranças

Conta-me as vidas e as viagens
Olha-me dentro, escuta as palavras
Muda-me o rumo
Mudo o sentir

Conta-me os dias, canta-me os sonhos
Que eu solto as asas e estendo as horas
Faz-me sereia
Levo-te os medos

Leva-me à noite, traz-me suspensa
Limpa-me o tempo preso às memórias
Solto as amarras
Vou com o vento.

Monday, January 16, 2006

Estavam sentados lado a lado e era Verão...


Estavam sentados lado a lado e era Verão...


Comecei a escrever...
Porém nem as cores me inspiravam e tudo ia parar ao lugar das ausências. Depois pensei que outros fariam melhor. Enquanto vou pensando noutro texto, aguardo os vossos...
(Podem deixá-los nos comentários. Eu passo-os para aqui).


E escrevi...

Sentavam-se lado a lado e era cedo. Roubavam o brilho ao sol e escreviam Futuro com as cores do Verão. Depois apertavam as mãos e percorriam em voo harmonioso todas as certezas.
Descobriam, ainda, as primeiras estrelas e, em segredo, os espelhos dos olhos diziam Desejo.
Dali seguiram para os mares e fizeram viagens. Primeiro os navios eram robustos e voltavam sempre ao cais. Aos poucos as amarras ensaguentavam os pulsos e doía ficar. E doía partir.
Passadas as estações do Tempo ainda os viram sentados lado a lado. E apertavam as mãos. Mas já se escapavam delas as certezas e os olhos, que eram espelhos, reflectiam suspiros secos.

Disseram depois que as cadeiras permaneceram no mesmo lugar. E que os olhos dela reflectiram todas as cores do verão quando se sentou.




À sombra, enviado pela Wind

Mas onde estavam, por baixo daquela sombra, fazia fresquinho. Era um casal dos seus cinquenta anos, com os filhos já criados e casados.Viviam agora a paz de umas merecidas férias. Ele parou de ler o jornal e olhou-a. Pensou em como ainda amava aquela mulher, mesmo depois de 28 anos de casados. Não se via sem ela. Ela sentiu o olhar dele, sorriu e encostou a sua cabeça ao braço dele. Deram as mãos e em silêncio foram mais uma vez cúmplices do amor.

E a Ivamarle deu sequência ao tema:

...e apreciavam ambos o voo das aves que ele ia identificando, com o seu olhar educado para o reconhecimento delas, pelo voar, pelo piar, e ia descrevendo o que faziam: - olha aquele é um macho e está a tentar acasalar; aquela ali é uma fêmea, vês o que leva no bico? são materiais para construir o ninho... - são tão lindos - dizia ela- não entendo como consegues identificá-los a uma tão grande distância. - é facil, dizia, olha as cores e o bater das asas, são tão diferentes umas das outras, bem como o piar de cada uma delas, já reparaste que mudam consoante, estão a acasalar ou simplesmente a defender o ninho? - há anos que tento distinguir, mas confesso que não consigo educar o ouvido ou o olhar para isso; no entanto admiro-as, como admiro o teu conhecimento desses pormenores.- ao fim de 24 anos ainda me admiras? perguntou com um sorriso trocista?- admiro sobretudo a tua persistência em aturar-me há tantos anos, e responderes com carinhos aos meus maus humores...- sabes, disse ele, eu sou como os pombos.- como os pombos? inquiri...- sim, quando acasalam é para toda a vida.

E a Fatyly escreveu também:


Olho através da vidraça do meu quarto. A buganvília sempre florida, pintada como só ela sabe fazer e tentando chamar a atenção de quem a observa. As cadeiras vazias, as mesmas cadeiras que o tempo jamais destruiu. Lembranças...- Manel, já viste como o tempo passa? Ainda há pouco os filhos andavam por aqui! - Oh Maria deixa-os lá viver a vida deles e não tarda aparecem aí com os netos! Hoje é domingo e está um dia tão lindo! - Tu quando estás a ler o jornal és um xato não me ligas nenhuma.Manel na sua infinita calma, tira os óculos, dobra o jornal, ajeita os cabelos brancos, enche o peito de ar, olhos de carneiro mal morto e com as suas mão calejadas... retira do colo os trapos que Maria cosia a abraçou-a. - Maria tu continuas linda, ainda me lembro do primeiro beijo, queres fazer amor, ou melhor como dizem os nossos filhos...queres dar uma keka?? - Aqui? Tu és doido? Larga-me pá, mas agora deu-te p'ra isso, já vistes que falas como eles? - Sabes que sempre fui louco por ti e tu por mim não é e o amor não tem idade não é?- Se tivesses dúvidas não estavas aqui pois não? Manel...olha os vizinhos, tem juízo homem de Deus e se os filhos aparecem? - A!AH!AH! e que importa? ‘Tá um calor tão gostoso e eu gosto tanto de ti! A bunganvília começou a abanar-se com uma aragem tão aconchegante e sobre ambos deixou cair algumas florzinhas abençoando aquela união de corpos e almas, sem idades, sem tabus, o mundo era apenas dos dois. Os filhos entraram e ao verem... deixaram-nos na sua felicidade, porque Manel e Maria estavam na sua cumplicidade, entrega, carinho e amor...tanto amor! - Gostaste Maria? - Gostaste Manel? Silenciosamente levantaram-se, recompuseram-se e de mãos dadas entraram em casa onde foram recebidos com aplausos e numa só voz: papá e mamã não cuscamos nada, respeitámos a vossa privacidade... aguardamos aqui dentro, porque quando se ama... todos os lugares são nossos, tão nossos e de mais ninguém! Parabéns Pai parabéns Mãe e obrigado por serem tão felizes!

Os vidros da janela ficaram embaciados pelas minhas lágrimas... Manel porque deixaste-me tão sozinha? Os filhos pintaram tudo, mas deixaram p'ra sempre aquele canto, como um santuário.Vou fazer o almoço, pois os cinco netos vêm almoçar e têm escola de tarde! Depois mais loguinho venho falar contigo Manel e relembrar vivências tão nossas! Beijos meu AMOR!

Nota: estou com um problema no espaçamento das linhas... tem de ficar assim, espero que não se importem.

Depois veio a Stela, assim:

Sentavam-se ali há anos, os dois, sempre os dois... primeiro sós, enamorados e ofuscados pela presença do outro. Mais tarde vieram os filhos e alternavam então entre as cadeiras e as brincadeiras dos miúdos, sempre com pedidos: - Pai vem jogar à bola... Enquanto isso, as cadeiras ficavam vazias, a Mãe preparava o jantar. Os miúdos foram crescendo... naquelas cadeiras, teceu-se o futuro imaginário dos filhos, discutiu-se a educação, sonhou-se o futuro, chorou-se o passado... quando ficaram sós novamente, as cadeiras voltaram a desempenhar o papel fundamental de sempre nas suas vidas... nessa altura, já não tecia o futuro dos filhos, já então construido por eles, sonhava-se então com os netos, que depressa vieram... os anos passaram, passaram tão rápido, que hoje de toda uma vida, feita de sonhos e castelos, restaram as cadeiras para os imortalizar...

E o Prólogo escreveu os Efeitos:

Estavam sentados lado a lado e era Verão. No Outono sentavam-se frente a frente e no Inverno costas com costas. Na Primavera não se sentavam. Andavam pelas bermas dos passeios e ora num pé ora noutro, iam gastando a alegria em passos de dança e variações sobre dois corpos.

Estavam sentados lado a lado porque era Verão. Não por causa dos excessos da estação, do calor , da luz, do aroma, da indolência. Por uma razão habitual. Por uma razão nenhuma. Porque assim olhavam na mesma direcção e é provável, deve mesmo estar demonstrado, por algum monstro, que no Verão os dois olham para a mesma imagem. Propensão genética, impulso divino, força astral, tradição, o escudo da sombra, a boca que fala e o ouvido que ouve.

Estavam sentados lado a lado porque era Verão. Não sei que Verão. Não sei o que verão daquele lugar sentado que é quase sempre o lugar da espera. Mas estavam sentados lado a lado. Quando, no Outono se sentavam frente a frente era para se olharem um ao outro, fixamente, deliberadamente à procura do mistério. Porque há no Outono de cada um um mistério que é mistério para o próprio e revelação para o outro. No Inverno, costas com costas, olhavam para sentidos opostos mas os sentidos libertos da pressão omnipotente do olhar, sentiam com mais intensidade e escorraçavam o frio que penetrava ameaçador pela frincha da porta.

Estavam sentados lado a lado e era Verão. Poderia ter sido ao contrário, poderia ter sido de muitas maneiras diferentes. Mas o Verão era depois da Primavera, depois dos saltos pueris que os faziam dispensar os assentos e em que o alvoroço que brotava da terra parecia chamar às coisas alegria.

Estavam sentados lado a lado e era Verão. Era por estarem sentados lado a lado que era Verão.

E a j.p. , do Faz de Conta, também colaborou:

O cheiro da buganvília entra-me sem pudor nos sentidos. Reporta-me a cheiros de terra nuances de doces mel. No tempo das fugas rápidas, era a enterrar as mãos nuas na terra, que a harmonia e o contraste me paravam no tempo que teimava em andar depressa demais. E todos os dias a espiava, certa de que o meu olhar guardião a estimulava a crescer. E todos os anos floriam, uma e outra camada de papel lilás. Nunca me sentei debaixo dela na invasão do seu espaço. E agora que a vejo por detrás do muro, sorrio. E penso sempre, se um dia alguém se interrogará, corpo num lado e pés no outro das cadeiras brancas, quem foi o jardineiro de pés descalços e óculos de sol que a plantou.


A Maria, das Estórias do Bicho da seda, escreveu um "conto" :

Estavam sentados lado a lado e era Verão...aquele Verão que mudou para sempre as suas vidas e a sua forma de olhar o mundo.
Artur estava tão bem humorado que, no entusiasmo dos seus vinte e quatro anos, o mundo lhe parecia um lugar quase perfeito. Segurando com carinho na mão de Matilde, que estava a um mês de se tornar sua mulher, levava-a numa visita guiada ao futuro imaginado, sob aquelas bungavílias que lhes conheciam todos os segredos e sobre as quais a PIDE/DGS nunca tivera ascendência alguma.
A revolução de Abril trouxera-lhes potencialidades nunca sonhadas. O clima de alegria com a liberdade recém conquistada impregnava-se no sangue e na alma de um povo inteiro e todos os sonhos pareciam agora possíveis. Artur conseguira trabalho como jornalista num novo jornal havia dois meses e sonhava com o tempo em que a gerência o viesse a enviar como correspondente ao estrangeiro. Matilde acompanhá-lo-ia para todo o lado como já fazia agora, a menos, claro, que o jornalismo não a interessasse e se quisesse dedicar ao seu objectivo de fundar uma pequena editora.
Matilde ria-se, contagiada pela alegria do seu amor e pelo optimismo dos seus dezanove anos, que queria ainda estudar Letras e depois se veria. Mas então e hoje, não tens trabalho para fazer? Ah sim, claro (naquele seu jeito sempre despreocupado), tenho uma delegação do PCP para entrevistar. Aliás, o plano para os próximos dias é falar com representantes locais de todos os partidos e recolher as suas opiniões sobre como o país deve ser gerido. Agora todos têm direito a ser ouvidos, tal como antes todos tinham o direito de se reduzirem ao silêncio. Mas vens comigo, claro! Preciso da minha assistente e da minha musa, além de que a tua curiosidade é sempre uma mais valia, quando não é inconveniente...
Fingindo-se amuada com o comentário ela abandonou um tanto ou quanto relutantemente a sombra das bungavílias e foi preparar as suas coisas. Daí a pouco iam os dois na motoreta emprestada pelo futuro sogro a caminho da tal delegação regional do PCP, as cabeças já fervilhando de perguntas sobre as medidas práticas que aquele partido pensava implementar. Nenhum deles tinha qualquer filiação política, achavam-se livres pensadores e gostavam de analisar primeiro todas as variantes e só depois escolher. Apesar de todo o seu entusiasmo e fé no futuro Artur trazia no fundo de si uma sombra plantada por alguns excessos que já tinha presenciado. Uma parte podia ser atribuída ao facto de as pessoas depois de tanto controlo durante tantos anos se verem subitamente livres e, tal como um filho finalmente longe da disciplina dos pais, a liberdade sobe à cabeça. Mas ele temia que os excessos se tornassem o sistema e que afinal alguns entendessem apenas substituir uma ditadura por outra.
Ninguém lhes cantou o Grândola Vila Morena na recepção, mas foram recebidos com o título de camaradas e com abraços como se fossem conhecidos há longos anos. Havia bandeiras vermelhas por todo o lado e era notório o entusiasmo dos camaradas que por ali se encontravam.
A entrevista, contudo, nunca chegou a ocorrer. Enquanto Matilde analisava umas fotografias da Revolução numa das paredes e Artur voltava à motoreta para ir buscar o saco onde transportava o material fotográfico, houve uma explosão junto à secretária do entrevistado. Matilde pouco sofreu, praticamente apenas ficou em estado de choque com o susto e com o horror do que viu depois, apesar de Artur ter sabido por um amigo seu da polícia que houvera um problema na detonação da bomba que, da forma que tinha sido preparada, deveria ter provocado muito mais estragos.
Artur teve, naquele dia, informação que não procurava. E, contra aquilo em que acreditava – que a informação devia ser apresentada tal como era, preto no branco, sendo as opiniões mencionadas em artigos próprios para o efeito – viu o seu artigo modificado pelo redactor-chefe, transformado num relato na primeira pessoa, manifestando opiniões que nem sequer eram as suas, como aliás era característico de todos os grandes jornais da época.
Mas, mais do que tudo, incomodava-o uma coisa – que liberdade era esta, que se tinha conquistado sem o peso da morte e do sangue e em que agora se espezinhavam cravos e vidas?
Desiludidos com o caminho que as coisas tomavam e por verificarem que ninguém parecia interessado em apurar a verdade dos factos, já que a investigação sobre o que acontecera não chegou a conclusão nenhuma que não fosse o óbvio, acabaram por tornar-se ambos jornalistas de investigação, determinados a evitar que certas verdades ficassem reduzidas a pó e silêncios comprometidos.
Casaram sim, e foram felizes. Mas a sombra daquelas bungavílias nunca mais lhes conseguiu devolver a paz da inocência roubada.




Saturday, January 14, 2006

Elipse




Mudei, pois, de nome.
Não convém que sejamos homónimos de outras pessoas, ainda que casualmente as coisas aconteçam.
Elipse.
Para além de ser uma palavra agradável assenta-me muito bem.

Mas sou ainda a mesma!

O prazer do texto


“Se leio com prazer esta frase, esta história ou esta palavra, é porque todas foram escritas no prazer (este prazer não entra em contradição com os lamentos do escritor).
Mas o contrário? O escrever no prazer garantir-me-á – a mim, escritor – o prazer do meu leitor? De modo nenhum. Esse leitor, é necessário que eu o procure (que eu o “engate”), sem saber onde ele está. Cria-se então um espaço de fruição. Não é a “pessoa” do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do fruir: que os dados não estejam lançados, que exista um jogo”.

Roland Barthes, O Prazer do Texto




Não é que preparar a Primavera no Outono seja omitir o prazer do lamento. Esse é de todos os dias e subtraí-lo à escrita é anular o sentido do exercício. O meu. O do leitor é outro bem diverso mas esse deixa de me pertencer no momento exacto em que o texto lhe surge aos olhos. É de interpretações que depois se faz a mensagem. Podendo ser de desagrado, não obstante o prazer do meu fingimento ou da minha verdade, que de um ao outro não vai grande distância.
Sobra, pois, o espaço de fruição. Este.
E o jogo.

Wednesday, January 11, 2006

Quem me dera ser ainda ontem

A fotografia é do
Quem me dera ser ainda ontem.
Lembro os anos da infância como se fossem hoje. E sinto-me menino ainda.
É estranho dizê-lo, ninguém compreende esta sensação de apetecer deitar na areia, de rebolar até sentir tontura e olhar os cavalos marinhos desenhados nas nuvens. Ou o risco de um avião que passa rumo ao outro lado do mar. Como se fosse hoje.
Aqui estou de corpo ainda meu mas já mal comandado.
Quem me dera ser ainda ontem e estar assim como tu, menino meu, acocorado a sonhar formas nos desenhos que as mãos deixam na areia solta.
Sonha.
O tempo é teu.

No Outono preparo a Primavera

ela inspira-me ...


Noutro tempo fechava as persianas e os olhos
E deitava-me sobre o desconforto
Da palha molhada
Sabia vagamente de folhas secas amontoando-se
Nas esquinas.
Depois não queria saber de mais nada
Até que passasse a estação das chuvas:
Invernos longos de desejo, ainda que morto e estéril
E pingos de chuva nas palavras magoadas, dentro das gavetas.

Sozinha, desloquei um pouco o olhar
E onde estavam profundos amarelos a desmaiar de tédio
Imaginei rosas a desabrocharem
Depois da espera.

Não sabia que era possível respeitar o tempo
Sem angústias
E preparar a Primavera nos ramos secos.




Sunday, January 08, 2006

O problema do começo (3)

(continuação)
Saí do café com a sensação de ter estado aprisionada em histórias e precisei de andar um pouco a pé. Tentei não olhar para ninguém, embora o movimento, nas ruas de uma cidade, seja normalmente cruzado; raramente duas pessoas se dirigem para o mesmo sítio ou, se se dirigem, os propósitos afastam-nas do eixo comum. Quanto a mim não queria dirigir-me para lugar nenhum; precisava apenas de desbastar uma quantidade de condicionalismos que estavam a cortar-me os diálogos e criar pormenores que não fossem simples fragmentos ou rumores de factos sem importância.

E enquanto divagava sobre a importância das coisas visualizei a grande mesa de carvalho onde todos tínhamos pousado as mãos: dezoito pares de mãos em atitude de espera, cada uma delas querendo esconder das outras os projectos feitos para o uso do dinheiro que viria a ser distribuído após a celebração da escritura de venda do terreno sob o qual deveríamos deixar enterrada a discórdia dos últimos anos. À medida que a voz profissional da notária reproduzia nomes e valores as mãos agitavam-se: uma tirava o anel e voltava a pô-lo no dedo da outra, duas mãos pequeninas apertavam-se, encaixando-se, enquanto outra pressionava o par fazendo estalar os dedos, um a um. Em algumas já se impacientavam as canetas aguardando o momento de derramar a tinta sobre a verdade material do papel timbrado. Penso que vi também uma mão precocemente aberta e outra imperturbável face à comparticipação nos rendimentos patrimoniais ali pronunciados.

E houve um momento em que me cruzei, na minha marcha, com uma mão que se acercava para depositar na minha, involuntariamente disponível, um papel que comecei a ler, distraída: “Já fizeste parapente, asa delta, escalada…”. Eu ia subindo a rua sem direcção precisa, distraindo-me em duas ou três frases que não retive e detendo-me finalmente no apelo “…vem ter connosco e viverás a experiência mais louca nas águas do Tejo”. Reparei no título “Emoções Fortes” e, já no escritório, quando a urgência de um encontro veio pelo telefone – tinha de ser para dali a meia hora, no máximo – disse ao gerente que descontasse uma manhã às minhas férias e apressei-me para o café onde a Lurdinhas me esperava, levando na mão o prospecto para lhe dar.

FIM

Thursday, January 05, 2006

O problema do começo (2)


(continuação)
Normalmente abomino a chuva. Mas também me desgostam os dias de calor excessivo, fico como que abalroada nos gestos, sem acção para me movimentar e nem as páginas de um livro me devolvem a paciência. Estava à mercê da água, naquela manhã invernosa, dissolvendo-me numa sensação incómoda de cansaço. Tinha estado a ler contos até muito tarde: histórias de mar, umas com sinais premonitórios de tragédias sob ventos e tempestades; outras relatando ousadias sobre a ordem cósmica seguidas de imersões nos abismos. Antes mesmo de adormecer deixara que as palavras me mostrassem o corpo do capitão pirata a afundar-se em silêncio, os dois homens cuspindo para as mãos e continuando a remar. Premonição de chuva, tanto mar pela noite dentro e personagens de mãos gretadas.

Olhei para o canto da sala: sentada, muito direita, de mãos serenamente pousadas sobre a mesa, uma cara enrugada parecia estar à espera. Não sei se tinha já comido ou se aguardava o empregado, se esperava o fim da chuva ou se apenas que o tempo continuasse a passar. Havia nela qualquer coisa que se assemelhava à imobilidade de uma pedra. Senti uma estranheza, uma impressão de esgotamento das palavras. E, no entanto, ela poderia representar todas as variantes e alternativas, todos os acontecimentos contidos no espaço e no tempo. Como se a sua presença cristalizasse a singularidade ordenada da matéria. Mas sem palavras.

Há, de facto, personagens ideais para contos. A Lurdinhas servia alguns modelos, ideal no melodrama ou nos desfechos imprevisíveis. Podia pedir-me para a ajudar numa congeminação maquiavélica, a morte do Cláudio André ou, quem sabe, um suicídio no Tejo, de cima da ponte, acabando-se tudo num mergulho mediático. Rui Belchior também podia servir. O outro pusera-lhe ironia no nome, quando o chamava a ouvir atentamente a ideia da empresa de emoções; pelo menos foi o que me pareceu quando lhe ouvi a gargalhada. De facto o nome não lhe assentava bem, não condizia com a finura do rosto, barbeado e hidratado e muito menos com os dedos esguios que podiam dizer-se de um Mendonça ou de um Menezes. Belchior devia incomodá-lo, como uma unha encravada, um espinho que se tivesse alojado entre a carne e a pele, produzindo uma secreção purulenta.

E, pensando bem, que fazia ali um tal indivíduo, a não ser desempenhar o meu próprio papel de registadora das histórias alheias.

Por outro lado, tinha também o pormenor da ira do gerente perante a minha ausência, agravada por um problema complicado que só eu podia resolver. Um homem gordo de faces congestionadas, cabelo muito farto e teimoso e uma dose incontida de mau génio sempre pronto a surgir por debaixo dos pêlos rebeldes das sobrancelhas. A ira de um gerente numa manhã de chuva daria um bom começo para um conto.

Risquei a ira e sublinhei a chuva. Parei, olhei para o ar, mordisquei o plástico da esferográfica. Estava farta de fumo e guarda-chuvas a pingar.
(continua)

Wednesday, January 04, 2006

O problema do começo (1)

Quando me telefonou com a urgência do encontro – tinha de ser para dali a meia hora, no máximo – já nem me dei ao trabalho de imaginar a situação. Disse ao gerente que descontasse uma manhã às minhas férias, tão longínquas sob a constância de uma chuva miudinha que inutilizava as duas horas gastas no cabeleireiro, e meti-me no carro.
Ela já tinha pedido o meu café, sentada numa confusão de fumo de cigarros e gabardinas transpiradas. Da última vez era a consciência a derramar lágrimas, depois de uma noite de vingança programada para um hotel de Sesimbra, precisando a voz de gastar-se em justificações e pedidos de legitimação do acto. Mas antes tinha sido a descoberta dramática de que o Cláudio André a enganava, tudo contado com pormenores e ameaças de suicídio, depois de outra vez em que me pedira dinheiro urgente para as obras da cozinha. Vinte minutos depois ainda a Lurdinhas contava, detalhadamente, histórias que me escapavam ao entendimento. Tinha de lhe dizer qualquer coisa; reparava agora que estava muito branca, as olheiras muito dramáticas e o guincho de um choro magro a incomodar-me a concentração.

Na mesa ao lado a gravata de riscas enquadrava-se bem na camisa monogramada e o tom de voz era convincente na argumentação, embora viesse do interlocutor e eu não o visse. O da gravata dizia que sim, que sim, e o outro assegurava que o projecto era arrojado mas garantido. Compravam um barco, talvez dois, contratavam dois ou três marinheiros experientes para não se correrem riscos desnecessários, davam jantar a três ou quatro sem-abrigo, desses que quanto mais sujos melhor, faziam uma preparação intensiva dos indivíduos, uma ou duas semanas de formação, que os fundos previam-na, e ele próprio faria de capelão, ou missionário, esses pormenores ficavam para depois. O da gravata agitava-se na cadeira; avisava, pelo telemóvel, que ia chegar um pouco mais tarde, bem se via, com a manhã chuvosa o trânsito estava impossível; e começava a incomodar-se com a curiosidade que eu devo ter posto na forma como lhes escutava as palavras. O outro entusiasmava-se, antecipando naufrágios simulados no Tejo, que as pessoas já não sabiam como preencher certos vazios e a empresa de emoções iria ter muito sucesso. O da gravata desencarcerou-se da camisa, aliviando o botão que o fazia transpirar e ficou mais atento. O outro continuava a expor-lhe os seus propósitos.

Não sei porquê, veio-me à ideia a travessia do Canal da Mancha antecedida da aproximação ao porto de Calais, em estradas de casario antigo, em cujas paredes se viam marcas das balas de há meio século. Tínhamos combinado fazer os registos dos pormenores, como um diário de bordo, para que um dia a memória não nos traísse. Ficaria tudo escrito e é por isso que me lembro que a viagem se iniciou com sol e um vento cortante. Há uma fotografia em que estou a agarrar o lenço cor-de-rosa para que ele não se solte do pescoço. Lembro-me também que abandonei a ideia da escrita a meio da viagem, quando o nevoeiro envolveu o barco e só se viam janelas salpicadas. Foi nessa altura que os bardos vieram, bailando em carrocel, aliviando-me da rugosidade de umas quantas palavras naufragadas. Enquanto jogávamos às cartas para ajudar a passar o tempo, um deles surgia das brumas, puxava-me para a montada do cavalo e desaparecíamos no ar, já o Francisco me dizia que não me distraísse, que era a minha vez de jogar.

Dei comigo a fazer um exercício de racionalidade – a Lurdinhas chorava, o parceiro do da gravata propunha aventuras no Tejo e a minha memória levava-me para a travessia do Canal da Mancha – e a concluir que só podia ser por causa da chuva.
(continua)

A criação

Volto às histórias planas. De vez em quando tiro-as do bolso onde a mão envergonhada as tinha espalmado, limpo-lhes o pó da espera e acrescento-lhes palavras. O segredo são sempre as palavras, que levedam no interior das mãos e depois passam em voo para o coração das coisas. Ou é ao contrário?
Mas dizia que volto sempre às histórias de passados. Não confio em magias e as escritas do momento são coisas a correr sem que o sabor se fixe, embora possam conter o essencial sendo ele matéria de alívio.
Histórias planas dobram-se por terem a dimensão de coisa mal começada. Há que eliminar os adjectivos que as desqualificam e criar estranhamentos que prendam olhos mais distraídos. Coisa de labor. E se o adjectivo ganhar gumes sem se mostrar aos olhos diremos que o contrato foi celebrado suspendendo-se a descrença. Depois é colorir as personagens de verosimilhança e tornar reais os subterfúgios. Mesmo com subversões.
Se voltar sempre às histórias planas e as encher de palavras como se fossem coisas plásticas criarei fingimentos sérios e neles serei lida como se fosse eu.
Não há, pois, real nas palavras que levedaram e enformaram os planos rasos. Porém, há que dizer as coisas como as sabemos

Monday, January 02, 2006

Cai a noite sobre as águas do rio (da minha aldeia)





Olhos postos na terra, tu virás
No ritmo da própria primavera,
E como as flores e os animais
Abrirás nas mãos de quem te espera.
Eugénio de Andrade



Olhos postos num céu pintado de laranja à beira-mar; anúncio de sol em outro amanhecer e eu ainda sem a luz das palavras-dias.
Agora é Inverno, eu sei, e o frio corta as faces de quem contempla os céus e morre de tanto olhar para o lado de lá das nuvens.
A terra está ainda fria e os troncos cheiram a musgo. Os ventos deixaram desarrumadas as folhas secas ao longo das ruas e há janelas com vidros partidos, atrás, rente à muralha.
Olhos postos na terra à beira-mar. E uma ave sobre os pensamentos. Como as flores, abrindo as pétalas ao sol do dia seguinte, enquanto a noite chega.
Agora ainda é Inverno; é por isso que protejo as mãos, arredondadas dentro dos bolsos.

Bem sei que é exactamente o Tejo o rio que corre pela minha aldeia. É por isso que não consigo estar ao pé dele pensando apenas nas flores que se abrem como mãos. Ou nas mãos.
Ao pé do rio, com os olhos postos no céu e as mãos guardadas, não consigo estar sem pensar em nada.

Sunday, January 01, 2006

Festas

Corriam todos para as caixas dos supermercados abarrotando de volume e garrafas a tinir. Parecia que o mundo ia acabar antes do último dia. Varriam-se as prateleiras.
Elas, depois, ainda passaram pelo cabeleireiro e fizeram madeixas coloridas. Puseram farpela nova e empinaram-se nos saltos para acentuarem a elegância. As pontas dos vestidos tombavam pelas pernas, em desequilíbrio.
Eles tiraram a rolha às garrafas para o estoiro festivo. Antecipavam os foguetes que depois enfeitavam os céus, aqui e ali.
Cumprimentaram-se todos entre gritaria e agitação, já com a fome saciada e as mesas ainda cheias.
A noite alonga-se sempre e a comida enjoa os olhos. A bebida ainda vai arranjando lugar.
Depois dormiram umas horas e, ao acordar, elas estavam despenteadas e com olheiras. A maquilhagem desfez-se e estava vincada mais uma ruga em cada pálpebra. A eles não apetecia fazer a barba.
Precisaram todos de água mineral.