Friday, December 30, 2005

Quase



Veste a brisa, veste a alma; veste-te de brisa; veste a mágoa de flores e aguarda os frutos. Aceita.
Abre as gavetas, abre os desejos; abre os sentidos. Desdobra as folhas secas e dá-lhes terra fresca. Rejeita a ira.
Tropeça na chuva, tropeça no pranto; levanta-te e ilumina esse espanto em que a luz tropeça quando te foca; e se te espantas é bom ainda.

Mudaste as roupas, mudaste o tom, mudaste o rumo; muda o sentido. Muda o sentir.

As estações sucedem-se e sucede que é bom ainda; veste o desejo; veste-te de alma.
E acalma.

Thursday, December 29, 2005

Anúncio de Janeiro com Primavera ainda adormecida

Eu dizia:
“Nenhuma brisa é triste”,
e procurava água, lábios,
um corpo
onde a solidão fosse impossível.*


Eu dizia que todos os ventos vêm carregados de tristeza. E que os silêncios pesam quando os ventos acalmam, fazendo sentir a distância a que estamos dos lábios ou do corpo. Ou apenas da música cativa nos dedos, quando os dedos acariciam. Ou ainda e tão só a distância que construímos para fugirmos de nós próprios e tornarmos possível a solidão.

Mas quem sabe dessa música
cativa nos meus dedos?
E depois, como guardar um beijo
mar doirado ou sombra
desolada?*

E dizia ainda de um beijo saudoso em tempo de festas ou de memórias acesas pelas iluminações que encantam almas outras que não esta, saudosa e inquieta, a guardar beijos como quem guarda folhas secas dentro de uma gaveta.

Recordava um rio
álamos
o sabor da chuva,
tropeçava em lágrimas e soluços
e lágrimas, e procurava.*

E digo ainda que o sabor da chuva tropeça também nas preces soluçadas, persistentes na procura dos álamos guardados em folhas-memórias, ainda frescas, ou em palavras-lágrimas que afectam a memória dos afectos.

Como quem se despe
para amar a madrugada nas areias,
eu dizia: “Nenhuma brisa é triste,
triste”, e procurava.

E procurava.*

Digo-o, ainda, como se me despisse para depois procurar uma brisa de sabor novo e me vestir com ela.


* Eugénio de Andrade - Ah, falemos da brisa

Sunday, December 25, 2005

Por que é que o natal me lembra Fernando Pessoa?

Passada a noite veio a chuva miudinha. E o nada fazer.
Aborrecem-me estes dias de acordar morno depois de noites preenchidas por iluminações fantásticas na alma alheia, roupa lavada a vestir vazios tão grandes como os meus. E começa o fingimento, porque vazio é palavra de mentira solta.

Dizem que finjo ou minto tudo o que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto com a imaginação. Não uso o coração.*

E também me aborrece pedir clemência em preces. E em tudo finjo a começar por isto.
Digo que o silêncio pesa. Mas não apetece mais do que estar triste. E dizê-lo.

Tudo o que sonho ou passo, o que me falha ou finda, é como que um terraço sobre outra coisa ainda.*

Digo que a distância magoa. Mas estar longe permite dizer também a mágoa de estar longe. E é um gosto sentir doer para se implorar à razão que venha com a chuva, numa persistência miudinha e cumpridora. E dizê-lo. Ou pedir à explicação que ajude a perceber o que podia ser explicável se fosse razoável. Pedir sem convicção, fingindo ainda.

Por isso escrevo em meio do que não está de pé, livre do meu enleio, sério do que não é. Sentir! Sinta quem lê! *

* Fernando Pessoa - Isto



Thursday, December 22, 2005

Balanço de fim de ano

O beijo saudoso recorda conversas agradáveis ao fim do dia quando o frio chegava de repente e obrigava um corpo a pedir emprestado o calor do outro; ou quando o sol se punha sobre o espanto das palavras e a cumplicidade dos olhos e trazia em si a noite; ou a meio de uma tarde de sol a bater nas ondas e nas roupas-agasalhos de fim de Outono. Tudo em sonho construído na estação das memórias.

As palavras, sempre muitas, contudo insuficientes para dizer o que a parte de dentro da frieza de fora não sabia exprimir, recordam-se em textos inventados que os outros supõem nascidos do coração, não sendo o coração a nascente da verdade mas do fingir secreto que é um fingir verdadeiro. Todas apagadas agora, por ser impossível lembrar se eram bem recebidas ou se era eu que as escrevia para as inventar nos seus símbolos. Tudo em memórias fora da estação construída.

O sorriso de natal – que não é alegre mas também não é triste – é apenas o que é, um sorriso escrito numa mensagem rápida a lembrar que me lembro de dias passados no passado; era eu uma mulher destra a cultivar emancipações e a coleccionar lembranças que ficaram numa folha de fim de Outono guardada numa gaveta, não sendo meu costume povoar gavetas. Tudo em estações construídas dentro das memórias.

Vai, então, o beijo em correio urgente para chegar ainda esta semana pois a seguir é Natal e as construções desfazem-se com as memórias da estação, em balanço rotineiro de fim de ano.

Monday, December 19, 2005

O trabalho do artista



Foi este o Olho que o Ivo fez para mim. É mesmo o meu, mas com mão de artista!
E dei-lhe muito trabalho, ele que o diga!
Gostei muito, Ivo!
No Olhar Surreal há muito mais "obras" para ver.


Não deixem de ler, mais abaixo, os textos que foram surgindo a propósito da fotografia do ToZé.
( Ivo Cação, Sem Cantigas, Bastet e Joaninha, Nokinhas e Ivamarle)

Sunday, December 18, 2005

Uma Sopa e duas Vidas

(O ToZé mandou-me a foto e sugeriu-me um texto... aceitam-se imterpretações para uma imagem tão bonita.)

Fica um pouco comigo não te vás já. Bem sei que a vida corre depressa e o tempo não chega para cuidares de tudo o que é o teu sentido, os miúdos, a casa, o tempo… ginásio, cabeleireira, viagens, reuniões… e diversões.
Já me deste a sopa, caldo atrasado para animar um pouco o corpo cansado; caldo entornado quando chegas e me vês desanimada, quase desamparada; é como me sinto quando me olhas e eu te digo com os olhos – fica um pouco comigo.
Já me deste a sopa e correste para o carro dizendo que o tempo é pouco. Fique bem, disseste tu de fugida, contra os meus olhos que agora são miudinhos e já não brilham como no dia em que te dei ao mundo; e tu tão pequenina, tão dentro das minhas mãos onde agora pões um malga de sopa antes de te ires a correr. Vivo das lembranças, eu sei que tens muito que fazer.
Fica um pouco comigo, digo eu calada, desolada, quase culpada por estar ainda aqui e ser o teu desassossego de todos os dias.
Mas sabes, eu fico bem assim. Deixa-me aqui entretida. E vai, que tens a tua vida.

No lugar do Escárnio e Maldizer faz-se assim uma legenda:

vê como estou, como a sopa que me dão antes era eu que a fazia, nem me sento nem saboreio, engulo a sopa que me dão, vês, antes era eu que a fazia e deitava-lhe pedaços de carne quando havia e couve todos os dias. fazia o caldo no pote ao lume, agora como a sopa que me dão, vês? é assim a vida filha, já não me deixam fazer a sopa e como a que me dão... e tu? 'tás magrinha, tens comido bem? lembras-te das sopas que eu fazia? quando podia era caldo, mas sempre no pote ao lume! ai filha vês?

E veio o Ivo Cação, do Zumbido, que disse:

Podemos olhar para um rosto e ver nele o tempo. Imaginar que esse tempo foi todo ele como se nos apresenta agora. Pensar que nos interstícios de cada ruga se alojou um desgosto. Mas também podemos ver no olhar firme o traço intenso da vontade e a fruição íntima de um gesto ou de uma memória. Digo eu. Que gosto de olhares fixos no horizonte, abandonados a uma reflexão que parece concentrar num instante todos os destinos. O nosso olhar é o momento do nosso olhar. E no rosto instantâneo, aliviado pela tigela de caldo, paira, naquela impressão primeira que me autorizou um sorriso terno, a posse de um passado cheio de acontecimentos, de acasos, de sortes e de perdas. Isso mesmo. Tal e qual como eu, tal e qual como nós. Um rosto que sobreviveu ao tempo, e que aparece agora recheado de idade, aconchegado pela roupa quente, alvo e quieto, imune às velocidades de quem ainda espera muito, lembra-me, às vezes, como neste caso, sabedoria. Parece-me, pelo menos nos dias bons, que não devo lamentar o tempo nem os cabelos brancos. A 'alma', essa animação que nos identifica e percorre um intervalo de tempo, tomando da terra a matéria emprestada, termina um dia. Mas cada um de nós é, enquanto é, só e apenas essa animação. E isso é extraordinário.

A Bastet viu assim:

Tenho nos olhos a ironia do que fui e ninguém sabe ou lembra. Tenho por vezes a tristeza desse esquecimento. Sei que este velho invólucro não ajuda à memória ou ao amor dos outros e, por isso, vivo sobretudo de recordações. Sinto o mundo da mesma maneira, o pulsar da terra e a diferença de um dia a mais. Tenho a vontade de gritar que ainda sou a mesma mas a certeza da estranheza desse grito. Porque somos sempre os mesmos. Iguais. A mesma essência numa matéria que se faz em brancos, dores e rugas. Esperei anos em vão pela suposta transformação. A que faria de mim alguém mais próximo do meu corpo. A que me transformaria na consciência da minha idade. E como é cruel ver-me como vi outros em outros tempos, quando então passava lesta e indiferente ao futuro. Quando o futuro nos chega às mãos e ao rosto apanha-nos desprevenidos. Porque somos a criança vestida de anos. Esperava eu que pudesse ser de outra forma. Que houvesse um lento descarregar das baterias da vida e da vontade para que me fosse indiferente o lugar que me cedem ou a beata compaixão que me concedem. Queria então justificar o jovem orgulho que me resta, sem o patético desprendimento que finjo. Ou que por milagre me vissem por dentro, para que lessem a origem desta arrogante agressividade. Põe-me nas mãos o caldo, a sopa que me alimenta a persistência mas que não me dá forças para me por fim. Pusessem-me na boca um beijo e escolhas nos dedos, chamassem-me ainda mulher e eu entenderia a roupagem deste meu destino.

E a joaninha viu-se assim:

Quando entro na sala de aula e vejo todos os seniores de olhos postos em mim, sinto-me como essa malga de sopa, ainda a fumegar, para reconfortar não estômagos, mas espíritos… e como é revigorante para mim o sentir isso…Pode ser uma forma de me libertar dos desamores… assim, eles são a minha tigela de caldo quente… Quando toca para a saída e me vêm beijar, sinto que cada beijo é um pedido de fica mais um pouco comigo… mas tenho de sair e dar lugar ao professor que segue… e senti isso, quando turmas imensas de adolescentes, ávidos de satisfazer as suas curiosidades, me vinham com canções da “berra”, para traduzir… para terem a minha atenção… são saudades que ficam… e eu, quase a chegar a um limite, quando vejo aqueles olhos, também gostaria que o grito interior fizesse eco, para lhe pedir para ficar mais um pouco comigo… mas apenas sou a imagem animada que o tempo deixou sem data… porque em cada novo rosto, ele vai encontrando uma nova paixão…Em linha também fui deixando as minhas palavras… e acabei por escrever demais, mas com tão magnífica foto e tão belos dizeres, não me contive.

A imagem chamou também a sensibilidade da Nokinhas:

Envelheci. O tempo teceu como rendas as rugas que já marcam o meu rosto e a neve poisou sobre a minha cabeça cobrindo-a com um véu branco. Os braços, que embalaram os filhos já não têm o mesmo vigor mas as minhas mãos, aquecidas pelo calor deste caldo partilhado contigo, com alguma tremura acariciam o teu rosto. Os meus olhos, que já não são o que foram antes, ainda te olham, embevecidos, e cintilam abrasados pelo calor da tua presença pois tu serás sempre o meu "menino". Deitando um olhar de relance à minha vida vejo um longo caminho percorrido com grandes provações mas, com a força que Deus me deu, hoje ainda estou aqui. Tenho casa, tenho esta sopa que muitos mendigam e que eu ainda faço com as minhas próprias mãos. O coração, esse está cheio de amor para dar. Envelheci. Mas só por fora. Por dentro ainda acalento a criança que há em mim. Vou do riso à lágrima, conforme me tocam o coração. Remo muitas vezes contra a maré e luto contra o desalento que teima em bater-me à porta querendo entrar. Espero ter forças para terminar a "caminhada". Estou viva!

E a Ivamarle, igualmente sensível nas suas palavras, viu também uma mãe saudosa.
Encosto-me à claridade, para que ela me aqueça um pouco o esquecimento vazio a que me votaram. Perde-se no murmúrio o meu olhar que já só vê memórias, e aqueço as mãos na taça de sopa, que me aquece, mas já não saboreio. Por vezes até penso: ao menos tenho uma sopa...na juventude quantas vezes quis e não tive, quando as senhas de racionamento não davam para matar a fome, e uma sardinha tinha que dar para quatro e à minha mãe só calhava a broa com o molho da sardinha cortada e dividida.Tantos sacrifícios...tanta luta, tanta noite em branco a pensar como iríamos arranjar-nos no dia seguinte, e eu ia para o pé do borralho aquecer-me e matar a cabeça: como? Onde? Ai os meus ricos filhos que não têm que comer, e eu não tenho quase força para cavar mais terra, para acarretar mais estrume, não tenho mais força para esquecer a morte do meu homem...ai os meus ricos filhos...E de manhã acordava acocorada no frio, e , sem saber como, levantava-me e fazia um chá de carqueja ou de tília, bebia um gole e deixava o resto, para os meus queridos meninos terem com o que enganar a fome. E saía e procurava o onde e o como, enganaríamos o estômago mais um dia. Recosto-me mais um pouco à claridade que se vai sumindo, e as memórias gelam-me as mãos e a sopa. Tanto sacrifício pelos meus meninos, e agora, há já anos que não vêm ver-me, ao princípio mandavam um xaile ou umas meias no Natal, e um postal a desejar Boas Festas, o último tem a data de há dois anos...queixam-se muito da vida, que lhes rouba o tempo e do dinheiro que só chega para as férias no Algarve e pouco mais; coitadinhos dos meus meninos, será que estão bem? E nem sequer me mandaram a fotografia do meu neto mais novo, que nem sequer conheço...encosto-me na espera, espero, desisto... a sopa está fria, mas ao menos, tenho uma sopa...

Wednesday, December 14, 2005

Novelo marinho

No Voz em Fuga voltou a haver desafio.


Parti do Novelo Triste e compus o Novelo Marinho, correspondendo ao mote da Hipátia.

(desenho de Gaivina)

Tinha-te dito que há dias em que precisamos de ver a nossa tristeza inundar os céus, afrontar os deuses, fazer-se matéria inteira, grosseira, gume afiado sobre uma pele desbotada.

Digo-te agora que desci dos céus aos mares, onde sou barco sem velas, parada, contrariada, incapaz de bolinar para alcançar o que está longe. Mesmo com vento. Astrolábio da desdita o meu que nada ensina. Nem me fascina.

Tinha-te dito que me deixasses sentir que estou só comigo.

Digo-te agora que sou mulher e espero sempre que outros ouvidos ouçam inversos daquilo que a boca diz. Caravela de esperança dentro de um coração apertado. Assumo.

Tinha-te dito que queria apenas ser coisa pura, talvez novelo.

Digo-te agora que só me vejo neste enrolar de mim para mim e que me afronta ser corpo em chamas sem que me toques. Por isso eu canto ainda. Calada. Por isso me detenho nesta almofada feita de fundos de mar. Depois deito-me numa cama gelada a ouvir o eco da ausência que me traz perdida, velha desdita de ser, sem ter contrapartida.




Tuesday, December 13, 2005

Poema para uma amiga triste

Por momentos ficaste de mãos vazias
Nos teus olhos vi farrapos de perfume
É assim que te recordo
Despida
Numa noite de estrelas cintilantes
Onde Vénus antecipava a despedida.

Punhas todas as palavras a dançar
Com energia
Quando falavas de lutas;
Alegria mascarada.

Fiquei sem sono
Arde-me a raiva
Fecham-se as mãos
Sinto-te irmã

Sondei-te os gestos nos olhos
Traziam lutos
E vi, depois, nascer na tua face
Uma lágrima gelada.

Monday, December 12, 2005

Sobre o ser português

Diz quem sabe que tudo pode ter começado com a rivalidade entre a aristocracia portucalense e a galega, sobretudo no plano religioso, com igual rivalidade entre Braga e Santiago de Compostela. Ao mesmo tempo autonomizavam-se outros espaços cristãos na Península, sem que possamos ter como assente o crescimento de uma nacionalidade face a um reino de Leão homogéneo. Diversidades regionais sempre as houve e há por todo o espaço peninsular e não é da geografia que vem a individualidade. Depois há ainda a considerar o carácter guerreiro dos primeiros reis em época de cruzada e as consequências que isso trouxe para o alargamento do território.
Enfim, de tudo isto terá nascido um país, com muito mais explicações à mistura, que a história não se escreve em meia dúzia de linhas. Quanto à vassalagem e ao espírito de independência daí nascente, o que me parece é que ela era praticada na época como instituição, logo, não há conceitos modernos que expliquem o passado, Nem há uma visão única sobre os acontecimentos, sendo que todas as explicações decorrem do olhar de quem as encontra nos documentos.

Ser português?
É complexa a explicação, porque o passar dos tempos traz ligações à terra, à língua, aos hábitos, a pormenores da maneira de estar e de se comportar; ligações que não fazem parte das nossas reflexões diárias mas que nos ocorrem por comparação, no confronto.

Pode ser essa a palavra: foi o confronto que nos deu alma (porque nos animou para a autonomia) e é do confronto com o outro que passamos a reflectir sobre o que é a alma portuguesa.
Sem que o fado ou o futebol nos expliquem ou nos justifiquem. E muito menos a saudade, que é coisa que se diz única mas que tem a ver com este assumir de uma pequenez evidente, dadas as dimensões do território.

Talvez me veja a reflectir um pouco mais, noutro dia…

Sunday, December 11, 2005

Fim-de-Semana em Dezembro



Não sei se é isto que é ser português, mas falávamos todos a mesma língua numa casa forrada a xistos, mesa farta e lareira acesa que lá fora, depois do sol ter caído atrás dos montes, o frio arrepiava os agasalhos e colava-se às pernas, enquanto os pés tentavam equilibrar-se no escuro. O Armando sabia de muitas coisas e a fábrica não parava de produzir informação. A Luna, matreira naqueles olhos vivaços de mulher-mastro, puxava conversas embaraçosas (risos) enquanto os da casa, no lado mais masculino, se iam esquivando às respostas; A Mushu carinha-de-sorriso distribuiu champagne, entre cigarros e graças e a Lima deitava simpatia pelos olhos. Nisso nenhuma das irmãs lhe ficou atrás: distintas, filhas dos mesmos braços que se abriram aos amigos, puseram calor na noite; a Iva mais do que isso, deixou-se ver por dentro quando falou dos seus mimos – e é bonita. Ficaram-me retratos de beleza, de uma beleza nascida ali no agreste da paisagem e cultivada em abraços de família que se junta e se gosta. E de quem se gosta.
O Manel tinha trazido flores – outra coisa não seria de esperar de um cavalheiro que deu provas da sua natureza sábia. E o Finúrias revelou outras provas – as da máquina fotográfica, as de uma sensibilidade muito fina e pura e as provas … do bolo de chocolate!
O Ivo partiu cedo e levou-me o olho direito, embora não o pudesse trocar pelos olhos lindos da Andreia porque as paixões são egoístas, felizmente. Fico à espera para ver o resultado.
Fim-de-semana em Dezembro, com as cores do Outono e o frio do Natal, porque tudo ali se misturou. Também o bacalhau da ceia e o espírito do acolhimento próprio das terras da Beira.

A mim ficaram-me as Palavras, lembrando-me que fiz, este ano, um Desafio ao Outono, depois de outros, carregados de folhas caídas. Para trás ficaram retratos antigos e variações no Verão.

Tuesday, December 06, 2005

Reflexões em Pisa

Falava-se de cidadania e a Aula Magna estava cheia. Toda a Europa estava representada e a participante espanhola cansou a assistência com um inglês medonho; depois a grega, com referências à politeia e à fratria. Foi às origens e colheu aplausos. Mas o inglês era sibilado (risos). Depois a flamenga a referir a necessidade de se repensar o conceito dada a mistura étnica a que o continente europeu vai assistindo. Ao húngaro perdi-lhe o fio, porque falou de emigrantes húngaros nos EUA mas tocou em Kant ou manifestou essa intenção. Abandonei o esforço.
Das ligações religiosas à secularização do conceito; dos medievalistas aos contemporâneos, todos envolvidos num gosto comum – escrever a História.
Ficou-me a questão que o francês usou para pôr o grupo a reflectir – o que é um francês? – e pensei que ter de provar a minha cidadania não seria assim um acto tão linear. Porque nasci em Portugal? (dantes, os filhos dos residentes coloniais ou emigrantes vinham cá nascer).
Porque falo português? (também um imigrante moldavo fala).
Porque tenho nacionalidade? (qualquer estrangeiro a pode adquirir).
E vocês, são portugueses porque…..

Sunday, December 04, 2005

Podia ter sido assim (2)

Começavam a ver-se os chiqueiros dos porcos à espera da faca que separasse o toucinho para a salgadeira, que o mais dos tempos a fome roía as entranhas quando a nudez do frio emaranhava pelos corpos. Depois os palheiros, casinhas de adobe rasteiras ao chão com telha muito gasta, as empenas a esboroarem-se gastas da esturração do estio e do salitre que soprava do suão, nos temporais invernosos. Dos poiais caíam cachos de malvas e alegrias da casa, dispostas em restos de vasos ou metidas dentro de cestas de palma entrançada.
Justina costumava sentar-se de pernas afastadas debaixo da chita da saia a dar espaço para o trabalho da empreita e ali ficava entrançando as tiras, cosidas umas nas outras, até que o redondo ia ganhando forma. À roda das casas corriam os moços pequenos zurzindo latas, caras sujas e pés descalços, os paninhos das camisas a saírem dos suspensórios com que seguravam o cotim gasto das calças transformadas pelas mãos destras das mães, que vinham para a rua ao fim das tardes – era a hora da lazeira, diziam –, sentadas nas cadeiras de vime, com a ceirinha das linhas e das agulhas, onde havia sempre um ovo de madeira para remendar as meias. Destacavam-se os caboucos do casario, de encontro aos cerros que fechavam a vila, vendo-se no chão as fendas da terra seca que levantava o pó branco à mistura com o canto das cigarras.
Os cães vinham ladrando ao caminho enquanto ela se afogueava e limpava o suor com as pontas do lenço.
Imagino ainda as falas:
- Ó ti Juliana! Chegue-me daí um cucharrinho de água, que já venho caminhando há tanto tempo!
A mãe da comadre levantava-se da cadeirinha de vime largando a empreita e lançava a corda à cisterna, ouvindo-se o eco do balde batendo na água fresca. Justina levava a cortiça à boca e refrescava depois as mãos e as maçãs do rosto.
- Vou à Igreja, ti Juliana.
(continua)

Thursday, December 01, 2005

Podia ter sido assim (1)

Sei que eles cresceram entre as estevas e as figueiras arredondadas, matando a fome com figos, pela manhã, em dias de sol, que as figueiras frutificam na primavera, como todas as coisas da vida, quando seguem o seu curso normal. Pai dançarino, folião, surpreendido pelas responsabilidades da vida quando ainda nem tinha tido tempo de cumprir todas as voltinhas do baile mandado, que os homens demoram a maturar. Mãe robusta de tanto parir: vinha um filho em cada dois anos, era apenas o tempo de dar de mamar ao anterior e já se o seguinte vinha a caminho, sei-o eu, de tantas vezes ter ouvido a história.
Sei que ela ia à Igreja porque o cheiro das velas e dos incensos era como que a prova final, se lhe provocava o vómito. Tinha, então, a certeza de estar novamente grávida.

Devia ser assim a caminhada para a vila, em direcção ao lugar que consagrava essa certeza:

Quando as alpercatas iam chinelando sobre a areia mais escura abrandava o passo mas se as carrasqueiras rareavam, o sol castigava e tinha de andar mais depressa. Debaixo do chapéu de palha ainda tinha a protecção do lenço, atado em duas pontas coloridas debaixo do queixo, misturando-se o cheiro fresco das estevas com o da transpiração, as meias colando-se às pernas magras. Afrouxava o aperto das ligas, fazendo-as deslizar para os joelhos. Seguia apressada, as mãos a darem o impulso da marcha, de trás para a frente, da frente para trás. Sentia a pieira no peito e o respirar era ofegante mas já avistava as primeiras casas da vila.Começavam a ver-se os chiqueiros dos porcos, à espera da faca que separasse o toucinho para a salgadeira, que o mais dos tempos a fome roía as entranhas, quando a nudez do frio emaranhava pelos corpos... (continua)