Sunday, October 30, 2005

Novelo Triste



A Hipatia da Voz em Fuga, lançou um desafio, a partir deste desenho.

Porque estás triste? Não te dei já o sumo de laranja que querias?

Respondi...

Gosto de coisas puras, perfeitas, autênticas.
Não suporto que me enganem, que finjam gostar de mim ou do que eu faço com dizeres amáveis, prestáveis, insuportáveis.
Por que vieste com a conversa do sumo? Mais parecias um miúdo inseguro nos actos, inconsequente, carente de mãos meladas.
Respeita as minhas lágrimas; há dias em que precisamos de ver a nossa tristeza inundar os céus, afrontar os deuses, fazer-se matéria inteira, grosseira, gume afiado sobre uma pele desbotada.
Não me toques nos cabelos; deixa-me sentir que estou só comigo, não quero ânimo servido em mãos adoçadas, enganadas de tanto pensar que podem salvar os outros das suas grades antigas.
Não me olhes, não me estendas um copo da cor das chamas; deixa-me arder por dentro que rebento se não consumo este sentir angustiado. Já me vi ao espelho, não precisas de me lembrar que o canto é grito calado; são assim os cantos dos meus olhos quando estou triste. O mais certo é teres andado desatento se nunca viste como sou planta sem viço.
Seguro o meu pé, viste bem; é certamente porque me enrolo neste feitiço de ser assim. Ser coisa pura, nua, talvez novelo. Assumo.

Thursday, October 27, 2005

Construções Narrativas

Histórias planas dobram-se e metem-se no bolso onde a mão envergonhada as espalma até deixarem de ter a dimensão de coisa mal começada. Reduzidas a pó ainda incomodam, contudo.
Não era, pois, de estabilidade que queria falar. Nem creio que quisesse falar de alguma coisa concreta. O caso era esse. Faltava-me adequar a personagem ao seu perfil, não tinha ainda definido as cores nem as linhas do vestido mas sabia que teria de ser amplo como convinha a personagens redondas; isso sim, que as queria anafadas de adjectivos omissos. Por isso nesse dia não tinha bolsos.

Disseram também que eram precisos antagonistas – só o vilão nos convence da bonomia – e que os devíamos encher de sedução. E eu, que apenas via o sorriso sério e franco metido nas páginas, entre asas de pássaros e o aroma velho de flores secas, não desencantava ali o natural engodo. E desesperava já de tanto me dividir: conto ou mostro? Estaria aí, se a encontrasse, a solução para o decoro; mas o que eu queria mesmo era ver o adjectivo ganhar gumes sem se mostrar aos olhos. Coisa de engenho.
Só faltava, pois, fixar-me no desenlace, inventar um artifício, criar, em suma o estranhamento que prendesse o infiel às palavras.

Monday, October 24, 2005

Descrença

Levaste-me a ver o mar de um sítio alto, visão magnífica, pensei, enquanto te olhava de soslaio para reconhecer passados. Busca-se sempre a versão dois de coisas póstumas. Escrevi levaste mas já não sei se fui eu que te levei e se foi a mim que olhaste; talvez tivessem sido olhos cruzados mas não me lembro de colisões. Trazias flores? Confesso a má memória, reconheço a teimosia de apagar tudo e destruir os adereços; depois é impossível refazer cenários, nunca se conseguem dois desenhos iguais. Era capaz de dizer que o beijo deixou sabor, mas qual beijo?, o que ficou perdido nos primeiros tempos ou a imitação desse, na ilusão procurada do mesmo arrepio? Só me lembro que estávamos sentados sobre espinhos mas tu dizias que era o verde da estação. Se lá chegarmos, pensava eu. Também me ocorre agora que era noite mas eu protegia os olhos como se o sol estivesse a pino; e o ar estava doce. Na tua boca. Foi então que estendeste a mão divina e eu transformei-me em sapo.
Maldita descrença.

Friday, October 21, 2005

Tentando entendimentos


Também te digo que há dias em que o tempo causa desconforto. Dias côncavos. Dias de trechos velhos cujo eco parece traçado em telas tempestuosas. Troncos torcidos de nudez rente ao outono e folhas secas sobre a terra entufando a lama. E telhas revestidas de verde sujo, fechos monótonos a cruzar as tentativas de entendimento.
Também te mostro a trama que se diz ter sido tácita; todas as teorias poderão testemunhar a tentação das culpas, porém nada faz sentido, apenas a paisagem como um tentáculo a matar a temperança e depois a tentativa sacramental da pacificação. Tudo turvo.
Acredita que de nada valem os lutos. Estava traçado o fim dos tempos em tatuagens celestes – era o que eu diria se não fosse o tédio. Porém nada transcrevo
porque nada estava determinado. Mas também não me satisfazem as entrelinhas.

Tuesday, October 18, 2005

Pedras desfeitas


Então dizias-me que havia uma pedra pousada no rio, uma pedra-ponte que se podia pisar para alcançar a outra margem. E que eras a pedra, pé firme sobre a solidez emprestada à partilha. Pé frágil o meu, pedindo apoio. Mãos postas sob os céus polidos de tantas preces.
Disseste que era para sempre. Podia ter sido para sempre essa ponte pousada no rio para chegar à placidez das águas. E o sempre fez-se tempo escrito no encanto das primeiras páginas de uma história de princesas. E depois passou sem se tornar eterno.
Para sempre ficaram as memórias num lugar de permanência que pintámos a duas mãos, sobrando agora apenas o olhar sobre o passado, pouco mais do que um passo em falso sobre uma pedra que as águas tornaram pó.

Friday, October 14, 2005

Retrato de um príncipe adormecido

Photo de Camilo Margeli


Constróis o teu casulo em seda espessa até sentires encoberta a existência; depois imaginas que nasceste num país todo coberto de neblina e é de névoas que fazes os teus dias.
Os bens nada te dizem de importante. Despojas-te do oiro, temendo ser um príncipe, antecipas o gelo com medo dos braseiros e apagas os incêndios à nascença; quando nos teus dedos nascem horizontes foges dos sentidos cobrindo os olhos com remendos tecidos do brilho das estrelas. Recusas a caligrafia demorada das palavras imaginando que elas denunciam a tua sede no caule de cada rebento novo; e vais secando, na alma, a terra das sementes que trazem a cor da lua. Temes, ainda, os salpicos da água no teu corpo sonolento e deitas-te protegido pelas dunas.
Se pudesse coroava-te de todas as flores e assobiava, num búzio, o chilreio das aves à beira-mar; parava os gestos na escultura do teu corpo e ficava a teu lado sem te chamar solidão. Depois fechava a noite no silêncio e levantava as brumas entoando madrigais de encanto, horas e horas sem fim, enquanto dormias.

Thursday, October 13, 2005

Em memória de Florbela Espanca

“Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os Homens! Morder como quem beija
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino se Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!”





Se eu fosse ela...








Disseram que eu acendo as fogueiras dentro de mim própria com as palavras que invento. Que coabito comigo e tenho tudo dentro de mim, como se fosse hermafrodita. E que me impus amarras que ninguém quebra.
Disseram também que eu faço temer com o poder das minhas palavras, que pode ser o poder dos olhos, se não as digo.
Disseram muitas coisas, tantas quantas cada um quer dizer se me intercepta a meio caminho, entre mim e o que não contenho.
Também disseram que sou mitificadora. Pouco importa.
Há qualquer coisa de autofágico em pessoas assim, talvez loucura ou qualquer coisa situada a meio caminho entre mim e o que não sei dizer à vida, dizendo-o em palavras que apenas vão de mim para o meu amor pelo próprio amor.

“Altiva e couraçada de desdém,
Vivo sozinha em meu castelo: a Dor
Passa por ele a luz de todo o amor…
E nunca em meu castelo entrou alguém”.
(Castelã da Tristeza)

Uma sensibilidade assim vem da loucura ou conduz a ela, não sei ainda qual é o sentido do processo. Mitificação do amor; amor querendo sentir-se sabendo da sua impossibilidade porque está gelada a capacidade de entrega; gelada ou arrefecida pelo medo. Ou pela vontade de mitificar uma coisa que, se for concreta, perde a essência.
Uma sensibilidade que gera a vontade de ver amor em tudo, de sentir amor por tudo, sem nada ser capaz de sentir.
É talvez essa a razão feroz da procura (ou a razão da feroz procura).
Haverá qualquer coisa no mundo que quebre o gelo?
Talvez o braseiro das fogueiras, por isso as incendeio deixando que elas consumam o que me pertence e que ninguém pode tirar de mim porque ninguém soube ainda quebrar as amarras.
Talvez o sofrimento do próprio processo criativo, o voar lento e brando das aves de asas longas, em vez do voar picado da gaivota.
Talvez a procura do prazer pelo prazer, engano dos que pensam que me entrego, engano dos próprios homens a quem amei, porque o que amei neles não foram eles mas o amor que queria ter sentido. Tudo dentro de mim.
Talvez a vingança de qualquer coisa obscura que passa pelo domínio do outro. O prazer do domínio. O desafio de ocupar o lugar cimeiro destronando o outro com o fluir das palavras-frases, olhos abertos ao lugar das confissões e do despir fácil, fragilizando quem quer que esteja para além de mim, sem sequer lhe ver o rosto. Ou inventando estátuas em chamas à força de lhes sentir o gelo, recusando o calor dos olhos próximos.
Quem inventa consegue ser o começo e o fim das coisas, chegando a confundir-se a si próprio com a imaginação criadora.
Amar o amor é uma cruxificação.

“ Gosto da Noite imensa, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!”
(A minha tragédia)

Wednesday, October 12, 2005

Vestido Roxo com Asas ou A Memória da Dor

O texto da Marquesa d'Aires, no Divas e Contrabaixos , fez-me recordar uma coisa que escrevi em vésperas de bisturis e batas brancas. Tudo já resolvido mas a memória a fazer ainda das suas...

Para resolver as más memórias podemos sempre olhar as imagens e as palavras da O'Sanji, não se sabendo onde começam umas e acabam outras, parecendo que se prolonga tudo numa sensibilidade muito especial.

Aqui vai o texto...





Photo de David Strohl



Vestido roxo com asas ou a Memória da dor

Nunca se sabe o que acontece dentro da memória quando os olhos se abrem em direcção ao tecto e as horas custam a passar. Deve ser o excesso de repouso abrindo-se, nesses momentos, o espaço às imagens do passado. E elas surgem, como se o tempo não tivesse existência e os ponteiros de todos os relógios tivessem ficado também imobilizados. Como se o tempo estivesse a vingar-se, arredando a verosimilhança das imagens guardadas na memória e fazendo soltar, desse reservatório de penumbras, a autenticidade das impressões registadas.
Se fechar os olhos centro-me toda na intensidade da dor. Por isso deixo que uma asa bata ao de leve nas pálpebras abertas e o tempo dilata-se, fluído. E os actos únicos, individuais, parados no tempo, tornam-se presentes.
Era roxa a cor do vestido que me enfiaram pela cabeça. Chegava aos pés, mesmo depois de apertadas as fitas do cinto. Levei-o para casa para sair já vestida, pela manhã. Creio que nem dormi ou, se dormi, sonhei com os anjos todos do paraíso.
Imagem bonita a dos anjos, povoando todos os presépios da infância. Coleccionava-os entre as folhas dos livros, alguns eram distribuídos pelo padre, na sua visita semanal à Escola: toda a classe de pé, “bom dia senhor prior”, e ele, muito direito naquela roupagem preta, abotoado de alto a baixo, mil botões miudinhos e uns óculos de vidros grossos com olhos pequeninos dentro. Falava-nos justamente no eixo do Cristo cruxificado, exibição diária de um sofrimento eterno, na direcção dos nossos olhos, quando tentávamos compreender a mecânica das subtracções, no quadro preto. Deve ter-nos dito que o roxo era a cor da paixão, sendo que a paixão era sempre sofrimento. Coisa estranha quando se acordava para a linguagem romanceada do amor.
Por cima do roxo, um par de asas brancas, feitas de rendas e arame, uma carreirinha de penas a esvoaçar nas pontas e fitinhas para as prender ao corpo, disfarçadas, sob o vestido. Na cabeça uma auréola dourada moldada em duas voltas encimadas por uma estrela, ilusão de estar sempre acompanhada pelo contorno da santidade.
As asas esvoaçavam em todos os espelhos e o meu sorriso compunha o voo celeste das pregas do vestido. Teria calçado sapatos brancos, provavelmente novos, provavelmente rijos, ainda não estariam moldados ao pé. Nesse tempo os sapatos eram chinelos e um anjo tinha de ser humilde. O padre dizia-nos que deveríamos fazer sacrifícios. Palavra pesada e mais pesado ainda o caminho para o paraíso, embora as imagens fossem de asas e de anjinhos de pele rosada.
No verso das pagelas os anjos deixavam um espaço para o registo do sacrifício do dia: hoje ajudei alguém a atravessar a estrada; hoje dei o meu lanche a uma menina pobre; hoje andei com sapatos apertados. Mas não é disso que me lembro. Continuo de olhos abertos para o tecto, sabendo que todo o esforço é doloroso.
Doem-me os braços, estão dormentes, quero voltar a pô-los na posição direita, quero que eles caiam pelo corpo, na vertical, mas não consigo.
Na véspera levara tudo para casa; era preciso ajustar todas as vestes ao meu corpo infantil, dar um jeito nas asas, compor a auréola e ensaiar o transporte do objecto sobre o paninho roxo, os braços estendidos para a frente e as mãos abertas. Na sacristia tinham distribuído todos os acessórios: o anjo branco levava o pano com que limparam as chagas de Cristo; o anjo azul levava a coroa; havia anjos roxos que levavam umas estrelas na mão, presas numa varinha – tão próximos das fadas – e eu, porquê eu? – transportava o feixe de varas com que lhe bateram.
A procissão saiu da Igreja, deu a volta completa à velha construção e foi percorrendo lentamente, todas as ruas da vila. À frente e atrás figuras de olhos muito tristes, de mãos postas, seguiam aos ombros de homens vestidos de roxo. A mim doíam-me os braços, sentia-os como duas peças mecânicas que deviam continuar a exibir o objecto.
Havia colchas brancas e roxas em todas as janelas, gente em todos os cantos de todas as ruas olhando para mim. Era eu que transportava o peso da maldade. Era eu que feria o divino. As minhas mãos abertas não paravam de exibir o feixe de varas com que Cristo tinha sido castigado, sangrando das feridas abertas pelas varas que os meus braços estendidos mostravam a todos.
Não sei quantas horas caminhei pelas ruas entre anjos e demónios, na tristeza do roxo com que me vestira pela manhã. As pessoas iam segredando entre si e era para mim que olhavam
. Os pés doíam. Mas não é isso que me perturba a memória. São os braços, dormentes, rijos; e a intensidade da dor quando os tentava descer. E a inquietação de um desconforto que se avolumava, à medida que as asas desciam, pesando-me já a consciência clarividente de que a dor era um erro.

Tuesday, October 11, 2005

Rumo ao Mar com as Aves pousadas nos braços

Vinha do Outono
e já não ousava lembrar
como era verde a paisagem;
vinha do sítio onde os ângulos das pedras
assanhavam os ventos
calando-se o assobiar dos madrigais
desfeitos no reflexo dos espelhos partidos;
onde os telhados adormeciam ao domingo
sob o desconforto da chuva miudinha;


Guardava alguns silêncios em lugares invioláveis,

e as palavras se acolhiam-se neles
quando os ouvidos lhes estranhavam a melodia;

lugares de labirintos com memória
e portas abertas para a estação das asas;


Devolvi esse lugar ao tempo
cruzado nas linhas
de um livro mal começado
e deixei aberta uma janela de palavras novas;
Foi no cais que me sentei
abrindo os olhos e deixando as mãos dobradas
sobre a curva dos joelhos.

Passou a noite; o sol demorou
a regressar a casa; nada trazia o nome
da pressa, a não ser os gestos da primeira vez
quando as mãos não sabiam
ainda ser serenas.

Não vieste como um barco. Eras o cais
Não abrias caminho por entre a espuma
Eras a espuma. Não chegaste,
Estiveste sempre entre as colunas
como um horizonte próximo
que acolhe o vaivém dos barcos
cansados da oscilação das ondas.


Contudo, tenho os olhos redondos
de tanto olhar os litorais,
lugares onde já não me detenho;
nem sequer nos Outonos
de telhados adormecidos…

Rumo ao mar.
Deixo que as aves pousem nos meus braços
carregados de penas e salpicados de espuma;
cruzo navios de pedra
as sereias mostram-me,
na transparência, as cicatrizes
que eu recuso; não quero permanecer
no lugar onde as ondas se desfazem.

Sunday, October 09, 2005

Os primeiros tempos

Foi a evocação das memórias a que o escritor me obrigou, misturando-se, depois, o cheiro das folhas molhadas que voam por aí ao sabor de um vento bom...

Ocorrem-nos as memórias em dias destes. As nossas, as reais, e as das nossas personagens, não se sabendo já se nos lembramos do que foi ou do que poderia ter sido...




Naquele tempo a vida era ainda tímida e as horas eram longas.
O palco da infância era a rua toda; e a outra rua; espaços no lado de cá do mundo, havendo o outro, grande, desconhecido, abstracto.
Brincadeiras de meninos povoavam a imaginação, marcados no chão os riscos e na alma.
Só havia uma janela, nem sempre aberta aos sonhos, nem sempre companheira dos risos. Naquele tempo não se podiam comprar todos os lápis de cor, os desenhos ficavam quase a preto e branco mas nas folhas do papel já se viam os sonhos.
Brincávamos às escondidas, unidos na sombra de um presságio invariavelmente cumprido. E os risos da infância perdiam-se no medo e na revolta.
Naquele tempo cumpria-se o ritual de uma viagem antecedida de lágrimas e portas fechadas; mas a chegada era boa: o baloiço pendurado na oliveira, o gosto das primeiras nêsperas apanhadas da árvore de folhas poeirentas, o mel que pingava dos figos, o doce das uvas presas aos cachos negros... doces que acalmavam os medos e a incompreensão das coisas.
Só havia uma janela e os sonhos acotovelavam-se, prisioneiros, em desejos de voo.
Sonhos já expressos em palavras, no papel, a preto e branco.
Talvez naquele tempo o resto do mundo, grande, desconhecido, abstracto, chamasse já por mim enquanto os sonhos transbordavam o espaço e a alma.

Thursday, October 06, 2005

As palavras da memória

Texto para concurso - Divas e Contrabaixos - a propósito das memórias do Escritor Famoso.


Há momentos em que paramos. Subitamente. Como se o corpo estivesse em exaustão e precisasse de recompor-se da corrida diária que é a vida.
Não se trata de parar para pensar, para desbastar a ideia que anda há semanas a ocupar a mente como onda espraiando-se sobre o areal da praia em dia de Agosto. Paragens dessas tive-as amiúde. Resultaram em páginas saídas das minhas mãos como pedaços de mim e espalhadas depois pelos olhos dos outros, olhos atentos, olhos de converter palavras em coisas acabadas com desfechos estranhos à minha compreensão.
O que deixamos escrito sai de nós para não nos pertencer mais. O que conservamos na memória permanece em nós e, se não o dizemos, é como se nunca tivesse acontecido. E dizemo-lo quando paramos.
Por isso trata-se, agora, de parar mesmo. Exercício de pacificação do espírito, memória que se acende em busca dos cheiros e dos gostos, das cores e dos brilhos que ficaram na infância e vão ressoando no tempo. Tempo de menino a combater os piratas, de espada em punho, num cantinho do quarto, herói de histórias inventadas, reais no espaço mágico do cavalinho de baloiço e da mesa redonda à volta da qual se sentavam os cavaleiros feitos de casacos sobre o espaldar das cadeiras. Tempo de mãos de mãe sobre os olhos, sobre a lágrima que molhava a face, sobre o bocejo do cansaço que sobrevinha às horas de brincadeira. E de voz de mãe a embalar nas cantigas. Tempo de janela fechada ao voo dos monstros que povoavam os pesadelos dos dias mais frios, quando o Outono derramava sombras amareladas e o cair da tarde deixava desenhos sobre o papel da parede. Tempo de colo, tempo de passos contados sobre o xadrez do ladrilho a caminho do baloiço pendurado na árvore mais robusta do jardim. E de gnomos sob a folhagem, ao fundo da sebe, aguardando a minha visita. E de línguas de sol a fazerem soar os bons dias, melodia da brisa que entreabria a copa das árvores e chegava a tempo de aquecer o gelo dos caminhos onde os homens pequeninos obedeciam às minhas ordens. Tempo de regressar a casa, ao cheiro dos livros, imponentes no couro das lombadas e nas letras que a minha infância já sabia serem tesouros. Tempo de azinho queimado em labaredas que atraíam os gatos e com eles os meus olhos que já escreviam palavras no cheiro dos veludos da sala.
Tempo em que a memória se enche de palavras. E de saudade.

Wednesday, October 05, 2005

O escritor famoso


Temos mais uma edição do concurso " O Escritor Famoso" no Divas e Contrabaixos. O mote são as imagens da memória do escritor. Participemos.