Wednesday, August 31, 2005

Máscaras sobre os medos

No princípio era o medo.
Por isso criei a máscara, ainda sem jeito para a criação. Resultou do acto uma imitação grosseira (todas as imitações são grosseiras se não achamos a palavra certa), sem original que lhe servisse de modelo.
Pode sempre dizer-se que se obteve uma peça única, mas a composição que sai da roda do oleiro deve ser harmoniosa.

Gosto da palavra harmonia, disposta em linha sobre a palavra horizonte. E, pensando bem, talvez a imitação pudesse ser indecisa e não grosseira; ou talvez apenas imitação, sem qualificação que a mascarasse.

Não posso, pois, confiar às mãos, grosseiras e incertas (qualificações excessivas no texto) a tarefa do recorte.

Gosto de imaginar o efeito das mãos unidas na contra luz, abertos os dedos em leque, sombra de asas em movimento harmonioso.

Resta a mente, definida em padrão arrevesado, de matriz inquieta. Mente confusa ou a confundir-se em regressos sucessivos depois de cada esconderijo. Mente apinhada de palavras moldadas em pedra. Nela a máscara nunca encaixou, em resultado de tão desajeitada carpintaria. Confiar-lhe a criação é apontar-lhe sempre caminhos de palavras desalinhadas.
Mas não é já o medo. É sempre a inquietação.

Saturday, August 27, 2005

Amores Imperfeitos

Todo o mundo foi feito de amores imperfeitos
Quer na violência de braseiros desvairados
Quer no gelo de retratos escondidos
Por detrás dos rostos;
Houve também no mundo os submissos
Que disseram nomes com a sua voz velada
E na brancura de cada amanhecer
Esperaram tardes incandescentes que não chegaram;
Outros não se renderam aos desencontros
E puseram urgência nos gestos dizendo
Todas as palavras; esses aproveitaram os ventos
E abriram as ondas em espumas que sulcavam
As redes abertas ao correr das águas.
Dizem, meu amor, que neste verão
Todas as árvores tombarão em chamas
E que as chuvas, guardadas, deixarão secar
Todos os pomares, e com eles os pássaros.
Saberás, quando chegar esse calor,
Da a violência de um braseiro
Que eu queria ter apagado
A tempo de cheirar o musgo e as agulhas dos pinheiros

Sem que o tempo me deixasse arrefecer;
Nada me pertenceu, nem o tempo
Nem sequer os teus olhos fugitivos,
Ou os braços com que enlaçaste a tua solidão (ou a tua solidez).
Derrama a água do teu gelo sobre esse chão seco
E faz nascer o verde sobre a areia
Que eu soltei do vidro
Onde o tempo se escoava.

Tinha um texto para escrever



Tinha um texto para escrever. Ou um poema.
Ou apenas umas palavras em linha que o vento desta manhã desalinhou.

Ou foi a noite inquieta que lhes alterou o sentido. Ou a inquietação que vem amiúde e danifica os pensamentos na sua origem e os desliga de todas as coisas. Dias seguidos de palavras alteradas depois do estrago. Declínio do sol sob a ocultação da luz. Braseiro aceso.
Tinha um texto para escrever. Ou um poema.
Ou apenas a tinta nas mãos aguardando uma tela.
Ou a pintura da noite inquieta na impossibilidade da representação. Ou as palavras representadas em linha sem vento que lhes capte o sentido.
Ou eu própria desalinhada no espelho. Imagem detestável na manhã inquieta.
Que fazer com as palavras que não se fixam às coisas?

Friday, August 26, 2005

Sede de palavras


A sede sulca-nos a alma.
É por isso que usamos as palavras
Coragem ou doçura ou desalento
Ancoradas junto ao vento
Elas trazem-nos a calma.

Thursday, August 25, 2005

As pedras

Por baixo de nós estavam as pedras. Penedos sólidos em filões que chegavam às varandas suspensas. E nelas estávamos nós, vestidos com a dureza dos desencantos em dias de paisagens nuas.
Não sei se era a estação do estio ou se tínhamos visto o mundo ao contrário
.

Tuesday, August 23, 2005

O que disseram depois

(texto enviado para o concurso promovido pelo blog Divas e Contrabaixos)

Sim, era com ela que eu passava o tempo todo mas o que disseram depois foi o que quiseram dizer. Disseram tudo o que se quis ouvir e em tudo eu fui ouvindo, ao longo do tempo, versões várias de uma história que só eu sabia.Passávamos juntos os intervalos e todos já diziam que éramos namorados e às vezes atiravam-nos pedras – “olha os namorados”, “olha os namorados” – cantavam, e ela, envergonhada, baixava os olhos e depois erguia-os para mim, inquirindo-me sobre a verdade do silêncio. E era verdade, eu quis ser o seu namorado desde que ela nasceu daquela mãe que se sentou no lugar da minha, que se penteava no espelho onde antes eu via a minha mãe dizendo o meu nome. Aquela mãe que quis contar-me, depois, as mesmas histórias para adormecer, histórias que falavam sempre de bruxas más escondidas em quartos escuros, saindo a voar em vassouras velhas rumo à França. Antes tinham dito que a minha mãe me deixara a chorar nas escadas, que tinha ido embora ao fim do dia e que eu fiquei a acenar-lhe com a mãozita chorosa, num adeus quase até logo. Do que me lembro foi de ficar sentado no cavalinho de baloiço durante todo o serão, enquanto o meu pai olhava para mim. Mas não sei porque lhe conto isto. Só sei que quis ser o namorado de Helena, sim, para sentir que alguém me dava o afecto que ela me negou quando se despediu de mim nesse fim de dia.

Sim, lembro-me, ele passava todo o tempo com ela. Já foi há muito mas lembro-me muito bem de os ver andar de baloiço nos intervalos; depois começaram a faltar-me às aulas. Claro que era meu dever chamar os pais à escola, não acha? Mas não é verdade que tenham vindo logo. Se tivessem vindo talvez se pudesse ter evitado o que depois aconteceu. Mas há este hábito terrível dos pais adiarem as coisas que são realmente importantes.Reconheço que ele era um miúdo complicado, já nessa altura escrevia uns textos estranhos nas palavras e mais estranhos ainda nas ideias que deixava escritas. Coisas de adulto, pensava eu, de criança que cresce depressa demais. Mas não sei se pensava isso nesse tempo ou se só o penso agora, já que nessa altura as atenções se dispersavam sobre todas as coisas do dia-a-dia e ele era um entre os outros. Dizia-se que o pai o tinha rejeitado, desde o dia em que a mãe o deixara a chorar nas escadas. Talvez fosse essa a razão de todas as coisas. Ele era um miúdo complicado. Ela não. Ela destacava-se pela brancura da pele, pela maneira especial com que se afirmava, sem querer ser a melhor aluna. Mas era. Era toda sensibilidade. Toda inteligência. Helena era a beleza. Era tudo, Helena!

Sim, disseram-nos que eles passavam todo o tempo juntos e que faltavam às aulas. Mas só nos disseram depois. É claro que tudo se podia ter evitado se nos tivessem chamado à escola logo que a estranheza dos factos lhes chamou a atenção. Digo-o eu, Maria do Céu, mãe de Helena, que o pai nunca mais teve condições para falar ou emitir opinião. Não tente falar com ele, não vai adiantar nada ao que já sabe. E digo também que o pai costumava pôr a pequenita nos joelhos para lhe contar histórias, mas sempre que o fazia chamava-o também a ele; não é verdade que o tenha rejeitado, não é verdade que o tenha obrigado a ouvir as histórias sentado à porta da sala para não incomodar a serenidade da família, como se disse. Se isso aconteceu foi naquele dia em que ele despedaçou, uma a uma, as minhas violetas dispostas em vasos sobre o parapeito da janela. Ele era já um garoto complicado mas eu não fui madrasta, não, fui mãe, que a outra deixou-o a chorar nas escadas e foi para França.

Se ela me deixou a chorar nas escadas a culpa foi de alguém. De Helena, que quis nascer para me anular a existência? Talvez a culpa tenha passado daquela mãe para ela. Ambas inimigas. No baloiço eu sentia que ela era minha e a pouco e pouco prolonguei esses minutos até me encher do seu perfume e da transparência da sua pele, até sentir a tontura de todas as emoções mal contidas. Fraco entendimento de menino, disseram também, e eu não sei se tinham razão, mas quando lhe empurrava os ombros para que o baloiço se levantasse no ar e pairasse no azul do céu da nossa escola, tinha sempre a visão daquelas duas ruas, de casario esboroado de telhados baixos e janelas com postigos, entre uma encosta de socalcos e uma parede velha em cujas brechas nascera musgo. Era para aí que dava a janela emperrada. Tinha de a levar a esse lugar. Era lá que iríamos abraçar-nos, rendidos à cumplicidade dos nossos verdes anos. Era lá que tudo iria passar-se. Se faria o mesmo? Como é que a gente pode dizer se faria o mesmo? É tudo uma questão de ausência. Ou de uma presença forte sobre essa ausência. Disseram também que construí a minha vida de vinganças e essa pode ser a razão de tudo, incluindo este lugar onde me vêem, que é um lugar de desassossego. Não gosto de vasculhar no passado: em cada estrato, quando estamos a libertar-nos de coisas inúteis, como a areia e as pedras, escolhos que camuflam pequenos cacos, encontramos indícios, enigmas que não nos deixam dormir em paz sem que lhes adivinhemos um sentido. Não sei porque lhe estou a contar isto, talvez a minha história sirva para a sua história, para a sua escrita. Registe nela, com as palavras que eu deixei no passado, a face branca de uma menina que eu vi depois no caixão, de longe, porque já nessa altura a culpa me matou também a mim. Mas nada do que se disse foi verdade.

Tuesday, August 16, 2005

O Chefe recomenda...

A propósito de um blog que linkei há dias e que recomendo - Trattoria on line - lembrei-me de deixar sugestões diversas, não minhas claro, mas deliciosamente escritas em
http://www.gastronomias.com

Dia de Verão

O sol nas costas, o sol nos ombros, as línguas do sol a lamber-me a pele, escaldão do sol nos reflexos dos basaltos dispersos pela areia, escaldão nos pés que caminham a desejar refrescar-se nos fios das ondas, brilho irisado no sopro da brisa que espalha pelo ares a espuma nos cabelos, sol de um dia de verão a enrolar-se no corpo entre os lençóis caídos aos pés da cama, lembrança de noite de calor em demasia, o sol a escaldar no corpo que escalda na noite, calor de corpos que se lambem em línguas escaldadas, arco-íris enrolado na noite em fios dispersos sobre a espuma.

Saturday, August 13, 2005

Ouvir as palavras







Deixa ficar a roupa pelo chão
Não arrumes, não melhores, não agites
Não faças nada, que o teu agir pode ser um escolho
Na interpretação;

Deixa ficar as palavras onde estão
Não alongues, não prolongues, não aumentes
Não lhes fixes os sentidos, que as palavras têm asas
Na imaginação.

Thursday, August 11, 2005

Pontes de Tédio

Eu não sou eu nem sou o outro
Sou qualquer coisa de intermédio
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro.
(M. Sá Carneiro)


Recuso permanecer no lugar onde as ondas se desfazem
Recuso ser qualquer coisa de intermédio
Entre rios sem margens e jangadas desfeitas
Recuso as pontes de tédio
E o tédio de não ter certezas.
Rumo ao mar.
A partida conduz à vertigem das viagens
Onde eu sou eu própria
Descoberta de mim em mim
No reflexo dos espelhos agora renovados.
E na loucura da partilha serena de mim e do outro
Digo adeus aos outros e peço às aves que me devolvam
O verde das paisagens nos seus cantos
Deixo que elas pousem nos meus braços
Aliviando as penas.
Agasalho-me de esperança e abro as mãos
Soltando delas todas as palavras.

O problema do começo

Quando me telefonou com a urgência do encontro – tinha de ser para dali a meia hora, no máximo – já nem me dei ao trabalho de imaginar a situação. Disse ao gerente que descontasse uma manhã às minhas férias, tão longínquas sob a constância de uma chuva miudinha que inutilizava as duas horas gastas no cabeleireiro, e meti-me no carro.
Ela já tinha pedido o meu café, sentada numa confusão de fumo de cigarros e gabardinas transpiradas. Da última vez era a consciência a derramar lágrimas, depois de uma noite de vingança programada para um hotel de Sesimbra, precisando a voz de gastar-se em justificações e pedidos de legitimação do acto. Mas antes tinha sido a descoberta dramática de que o Cláudio André a enganava, tudo contado com pormenores e ameaças de suicídio, depois de outra vez em que me pedira dinheiro urgente para as obras da cozinha. Vinte minutos depois ainda a Lurdinhas contava, detalhadamente, histórias que me escapavam ao entendimento. Tinha de lhe dizer qualquer coisa; reparava agora que estava muito branca, as olheiras muito dramáticas e o guincho de um choro magro a incomodar-me a concentração.

Na mesa ao lado a gravata de riscas enquadrava-se bem na camisa monogramada e o tom de voz era convincente na argumentação, embora viesse do interlocutor e eu não o visse. O da gravata dizia que sim, que sim, e o outro assegurava que o projecto era arrojado mas garantido. Compravam um barco, talvez dois, contratavam dois ou três marinheiros experientes para não se correrem riscos desnecessários, davam jantar a três ou quatro sem-abrigo, desses que quanto mais sujos melhor, faziam uma preparação intensiva dos indivíduos, uma ou duas semanas de formação, que os fundos previam-na, e ele próprio faria de capelão, ou missionário, esses pormenores ficavam para depois. O da gravata agitava-se na cadeira; avisava, pelo telemóvel, que ia chegar um pouco mais tarde, bem se via, com a manhã chuvosa o trânsito estava impossível; e começava a incomodar-se com a curiosidade que eu devo ter posto na forma como lhes escutava as palavras. O outro entusiasmava-se, antecipando naufrágios simulados no Tejo, que as pessoas já não sabiam como preencher certos vazios e a empresa de emoções iria ter muito sucesso. O da gravata desencarcerou-se da camisa, aliviando o botão que o fazia transpirar e ficou mais atento. O outro continuava a expor-lhe os seus propósitos.

Não sei porquê, veio-me à ideia a travessia do Canal da Mancha antecedida da aproximação ao porto de Calais, em estradas de casario antigo, em cujas paredes se viam marcas das balas de há meio século. Tínhamos combinado fazer os registos dos pormenores, como um diário de bordo, para que um dia a memória não nos traísse. Ficaria tudo escrito e é por isso que me lembro que a viagem se iniciou com sol e um vento cortante. Há uma fotografia em que estou a agarrar o lenço cor-de-rosa para que ele não se solte do pescoço. Lembro-me também que abandonei a ideia da escrita a meio da viagem, quando o nevoeiro envolveu o barco e só se viam janelas salpicadas. Foi nessa altura que os bardos vieram, bailando em carrocel, aliviando-me da rugosidade de umas quantas palavras naufragadas. Enquanto jogávamos às cartas para ajudar a passar o tempo, um deles surgia das brumas, puxava-me para a montada do cavalo e desaparecíamos no ar, já o Francisco me dizia que não me distraísse, que era a minha vez de jogar.

Dei comigo a fazer um exercício de racionalidade – a Lurdinhas chorava, o parceiro do da gravata propunha aventuras no Tejo e a minha memória levava-me para a travessia do Canal da Mancha – e a concluir que só podia ser por causa da chuva.

Normalmente abomino a chuva. Mas também me desgostam os dias de calor excessivo, fico como que abalroada nos gestos, sem acção para me movimentar e nem as páginas de um livro me devolvem a paciência. Estava à mercê da água, naquela manhã invernosa, dissolvendo-me numa sensação incómoda de cansaço. Tinha estado a ler contos até muito tarde: histórias de mar, umas com sinais premonitórios de tragédias sob ventos e tempestades; outras relatando ousadias sobre a ordem cósmica seguidas de imersões nos abismos. Antes mesmo de adormecer deixara que as palavras me mostrassem o corpo do capitão pirata a afundar-se em silêncio, os dois homens cuspindo para as mãos e continuando a remar. Premonição de chuva, tanto mar pela noite dentro e personagens de mãos gretadas.

Olhei para o canto da sala: sentada, muito direita, de mãos serenamente pousadas sobre a mesa, uma cara enrugada parecia estar à espera. Não sei se tinha já comido ou se aguardava o empregado, se esperava o fim da chuva ou se apenas que o tempo continuasse a passar. Havia nela qualquer coisa que se assemelhava à imobilidade de uma pedra. Senti uma estranheza, uma impressão de esgotamento das palavras. E, no entanto, ela poderia representar todas as variantes e alternativas, todos os acontecimentos contidos no espaço e no tempo. Como se a sua presença cristalizasse a singularidade ordenada da matéria. Mas sem palavras.

Há, de facto, personagens ideais para contos. A Lurdinhas servia alguns modelos, ideal no melodrama ou nos desfechos imprevisíveis. Podia pedir-me para a ajudar numa congeminação maquiavélica, a morte do Cláudio André ou, quem sabe, um suicídio no Tejo, de cima da ponte, acabando-se tudo num mergulho mediático. Rui Belchior também podia servir. O outro pusera-lhe ironia no nome, quando o chamava a ouvir atentamente a ideia da empresa de emoções; pelo menos foi o que me pareceu quando lhe ouvi a gargalhada. De facto o nome não lhe assentava bem, não condizia com a finura do rosto, barbeado e hidratado e muito menos com os dedos esguios que podiam dizer-se de um Mendonça ou de um Menezes. Belchior devia incomodá-lo, como uma unha encravada, um espinho que se tivesse alojado entre a carne e a pele, produzindo uma secreção purulenta.

E, pensando bem, que fazia ali um tal indivíduo, a não ser desempenhar o meu próprio papel de registadora das histórias alheias.

Por outro lado, tinha também o pormenor da ira do gerente perante a minha ausência, agravada por um problema complicado que só eu podia resolver. Um homem gordo de faces congestionadas por uma selva de capilares rosados, cabelo muito farto e teimoso e uma dose incontida de mau génio sempre pronto a surgir por debaixo dos pêlos rebeldes das sobrancelhas. A ira de um gerente numa manhã de chuva daria um bom começo para um conto.

Risquei a ira e sublinhei a chuva. Parei, olhei para o ar, mordisquei o plástico da esferográfica. Estava farta de fumo e guarda-chuvas a pingar.

Saí do café com a sensação de ter estado aprisionada em histórias e precisei de andar um pouco a pé. Tentei não olhar para ninguém, embora o movimento, nas ruas de uma cidade, seja normalmente cruzado; raramente duas pessoas se dirigem para o mesmo sítio ou, se se dirigem, os propósitos afastam-nas do eixo comum. Quanto a mim, não queria dirigir-me para lugar nenhum, precisava apenas de desbastar uma quantidade de condicionalismos que estavam a cortar-me os diálogos e criar pormenores que não fossem simples fragmentos ou rumores de factos sem importância.

E enquanto divagava sobre a importância das coisas visualizei a grande mesa de carvalho onde todos tínhamos pousado as mãos: dezoito pares de mãos em atitude de espera, cada uma delas querendo esconder das outras os projectos feitos para o uso do dinheiro que viria a ser distribuído após a celebração da escritura de venda do terreno sob o qual deveríamos deixar enterrada a discórdia dos últimos anos. À medida que a voz profissional da notária reproduzia nomes e valores as mãos agitavam-se: uma tirava o anel e voltava a pô-lo no dedo da outra, duas mãos pequeninas apertavam-se, encaixando-se, enquanto outra pressionava o par, fazendo estalar os dedos, um a um. Em algumas já se impacientavam as canetas aguardando o momento de derramar a tinta sobre a verdade material do papel timbrado. Penso que vi também uma mão precocemente aberta e outra imperturbável face à comparticipação nos rendimentos patrimoniais ali pronunciados.

E houve um momento em que me cruzei, na minha marcha, com uma mão que se acercava para depositar na minha, involuntariamente disponível, um papel que comecei a ler, distraída: “Já fizeste parapente, asa delta, escalada…”. Eu ia subindo a rua, sem direcção precisa, distraindo-me em duas ou três frases que não retive e detendo-me finalmente no apelo “…vem ter connosco e viverás a experiência mais louca nas águas do Tejo”. Reparei no título “Emoções Fortes” e, já no escritório, quando a urgência de um encontro veio pelo telefone – tinha de ser para dali a meia hora, no máximo – disse ao gerente que descontasse uma manhã às minhas férias e apressei-me para o café onde a Lurdinhas me esperava, levando na mão o prospecto para lhe dar.

Wednesday, August 10, 2005

Caleidoscópio

Podia estar sentada num banco de jardim
Estando ao relento
Podia ver-te, podia ter-te
Sentada na cama desfeita
Ou por detrás da janela, aberta pelo vento
Dentro do tempo que foi em vão
Podia tocar-te na pele roxa
Da cor da lágrima
Da cor da terra toda do chão
Podia ver-te, podia ter-te
Ou saber-te no som de um búzio
Perdido nos areais da espera
Ou por detrás da janela aberta pelo vento
Dentro do tempo
Podia ter visto o desassossego
Vestido de calma
Sentado num banco da cor do vento
Fora do tempo em que cresci
E vi, na alma,
Caleidoscópio já estilhaçado
Reconstruído dentro do tempo
E colocado por mãos em chama
Dentro da cama toda desfeita
Dentro da vida.
Poder ver-te, poder ter-te
E encontrar as cores em ti.

Tuesday, August 09, 2005

A espera

Evoco o tempo
E aninho-me num sentir magoado
À espera das horas e dos dias;
A passividade embala-me as memórias
Enquanto o tempo parece parado
Desperto devagar
Sem querer desprender-me
Das paisagens suspensas
E das falésias onde o tempo se perdeu;
E assim passam as horas.
Desta vez o outono chegou sem graça
carregado de folhas secas
Sob uma colina de névoas
Desenhando-se uma ave em sortilégio;
Roseiras cegas, asas sem vento
E silêncio.
Evoco, por isso, o tempo
Construo janelas com tinta nas mãos feridas
E sinto como gela o frio do abandono;

Fico assim, embalada nas memórias
À espera das horas que hão-de vir.

Divagando sobre a verdade

Gostava de equacionar a palavra Verdade numa fórmula perfeita, inalterável, mestra.
Para isso teria de entrar no mundo dos números, mundo racional, mundo de realidades apinhadas de vértices e arestas laminares ligadas seguramente por uma lógica e uma coerência interna que me escapa ao entendimento.
Terei, então, de entrar no mundo das palavras e ficcionar com elas (ficção é fingere, fazer) uma construção que arrume e organize a relação com o real.

Vamos ver:

- O presente é um lapso, um momento que se fez passado;
- O real passado já não existe. Lembrá-lo é entrar no domínio da representação porque todo o momento é irrecuperável, impossível de presentificar;
- Representar o momento é arrumá-lo no tempo, porque dentro da memória tudo se mistura em ritmos tão diversos, que a tarefa de o trazer ao presente falha, surgindo ele já como outra coisa, diversa do que tinha sido;
- Entre o real e a sua representação esvaiu-se o empírico; transfigurou-se o momento e o que daí resulta é uma versão que podemos sempre contar de outra maneira:

* Podemos iniciar o relato in medias res (na vida está-se sempre no meio!) e organizar tudo de uma forma harmoniosamente inteligível;

* Podemos também começar in ultimas res, invertendo o real, usando as analepses, em conjunto com a experiência que a chegada nos confere;

* Podemos até começar pelo “era uma vez”… mas com a consciência de que o início já começou no meio de qualquer coisa que era o fim da outra.

Dado que o papel do leitor é dar ao texto uma dimensão semântica, facilmente se deduz que a apreensão da verdade que aqui fizeste, leitor das minhas divagações, é única e apenas tua.
Dado, ainda que sobrevives da lógica e da racionalidade, (verdades muito frias para o meu entendimento), deduzo que terás chegado ao exacto ponto de partida:

Quid veritas

Que concluir, então, destas linhas filosófica e literariamente construídas sobre equações imperfeitas, análogas em tudo ao real guardado na memória?


Apenas isto: A VERDADE NÃO EXISTE

O deus

Estavas no cimo do Olimpo
E eu não sabia se eras árvore
Ou asa ou deus ou flor
Adivinhava apenas um caminho labiríntico
Entre pedras e troncos esguios.
Contornaria as pedras, pensava,
Deixando os olhos correrem pelos troncos
Em direcção ao céu.
Tao fácil adivinhar o caminho, pensava,
Rasgando os joelhos pelos vértices
Das pedras empilhadas
Antecipando os contornos de um corpo
A pedir o calor das mãos.
Apolíneo, alado
Só os olhos te adoçavam a frieza
Do mármore
E eu, subindo a encosta
Vestida de vermelho,
Lançava as mãos aos teus olhos.


Lá no topo, estavas parado
Olhando as águas.

Monday, August 08, 2005

Amores Imperfeitos

Todo o mundo foi feito de amores imperfeitos
Quer na violência de braseiros desvairados
Quer no gelo de retratos escondidos
Por detrás dos rostos;
Houve também no mundo os submissos
Que disseram nomes com a sua voz velada,
E na brancura de cada amanhecer
Esperaram tardes incandescentes que não chegaram;
Outros não se renderam aos desencontros
E puseram urgência nos gestos dizendo
Todas as palavras; esses aproveitaram os ventos
E abriram as ondas em espumas que sulcavam
As redes abertas ao correr das águas.
Dizem, meu amor, que neste verão
Todas as árvores tombarão em chamas
E que as chuvas, guardadas, deixarão secar
Todos os pomares, e com eles os pássaros.
Saberás, quando chegar esse calor,
Da a violência de um braseiro
Que eu queria ter apagado
A tempo de cheirar o musgo e as folhas dos sobreiros
Sem que o tempo me deixasse arrefecer;
Nada me pertenceu, nem o tempo
Nem sequer os teus olhos fugitivos,
Ou os braços com que enlaçaste a tua solidão (ou a tua solidez).
Derrama a água do teu gelo sobre esse chão seco
E faz nascer o verde sobre a areia
Que eu soltei do vidro
Onde o tempo se escoava.

Sentir


“Quando olho para mim não me percebo
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio, às vezes, ao sair
Das próprias sensações que não recebo.”
(Álvaro de Campos)


Falar nas dores que não tive, a propósito daquelas que se enclavinham na parte de trás da alma.
Não sentir nada, a não ser o bater das asas no silêncio dos olhos fechados;
Não chorar. Não dizer. Escrever apenas.
E poder encontrar na poesia a representação.

Sobre Florbela Espanca



1894: A 8 de Dezembro, nasce Florbela Espanca em Vila Viçosa.
1915: Casa com Alberto Moutinho.
1919: Entra na Faculdade de Direito, em Lisboa.
1919: Primeira obra, Livro de Mágoas.
1923: Publica o Livro de Soror Saudade.
1927: A 6 de Junho, morre Apeles, irmão da escritora, causando-lhe desgosto profundo.
1930: Florbela morre, em Matosinhos.
1931: Edição póstuma de Charneca em Flor, Reliquiae e Juvenilia e ainda das colectâneas de contos Dominó Negro e Máscara do Destino. São reeditados os dois primeiros livros.

Florbela conheceu três mães: a sua própria, Antónia Lobo, “rapariga exposta”, Mariana Toscano, a mulher legítima de João Maria Espanca, que não lhe deu filhos e por isso adoptou os ilegítimos (Florbela e Apeles) e depois Henriqueta de Almeida, segunda mulher de seu pai.
Poderá ver-se nesta insuficiência da imagem materna a origem da sua permanente evasão da realidade. E também da passividade com que desempenha a sua função de esposa, em casamentos tempestuosos: Alberto Moutinho, António Guimarães e Mário Lage terão convivido com uma mulher que mitificou o amor, não achando, nunca, satisfação nele, coabitando até à morte com a sua tragédia narcísica.
Exprimiu assim o carácter sublime do amor feminino:

“Gosto de ti apaixonadamente,
De ti que és a vitória, a salvação,
De ti que me trouxeste pela mão
Até ao brilho desta chama quente.”

E exprimiu também assim, paradoxalmente, como só a alma feminina sabe fazer, a ânsia de amar da procura sem retorno:

“Mesmo a um velho eu perguntei: _ Velhinho,
Viste o amor acaso em teu caminho?
E o velho estremeceu… olhou… e riu
E eu paro a murmurar: “Ninguém o viu!”

Doente desde muito cedo, Florbela poderá ter nascido de uma mãe sifilítica, sendo essa uma possível razão para os seus males pulmonares ou para um temperamento neurótico que se traduzia em tremores, angústias, analgia, excesso de sensibilidade, a irritabildade e insatisfação. Impulsos exigentes são-lhe também apontados, quase caprichos de menina a quem o pai faz as vontades, chamando a si a urgência do amor em explosões de alma intranquila.
Conhecemos-lhe uma rede de desejos em delírio discordante, quase uma permanente tragédia narcísica, que a leva a chorar as dores de si para si porque acende fogueiras com palavras inventadas, porque é umbral da sua própria dor, consumindo-se a si própria. Tem tudo dentro de si – hermafrodita, como lhe chamou José Régio – da sensualidade à catalização, da animosidade perante o eu até ao instintivo processo criativo. Ela cumpre a paixão do poeta, a de sentir a sua dor, ou melhor, as suas dores, a escrita e a referencial.

“A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.”

Nas terras alentejanas, outrora dominadas por uma elite intelectual e guerreira de origem celta, terá permanecido uma certa concepção da influência feminina dentro dessas estruturas jurídicas, sendo que o casamento não tinha um carácter sagrado. Terá Florbela sido herdeira, como avança Agustina Bessa-Luís, do conceito celta de divindade feminina que depois as sociedades romano-cristãs condenaram? O que é facto é que a poetiza não foi escrava do homem nem dos contratos de casamento; nela houve sempre a exibição explícita de uma sexualidade que assumiu um lugar de símbolo ou de mito, mais do que de objectivo. Emoção exaltada é a expressão das suas cartas para Apeles, de conteúdo intenso, na linha da intensidade com que usa as palavras nos seus sonetos, quer sejam de natureza exaltada, quer funesta, uns e outros desencontrados da felicidade.
O seu ideal era de completa fusão de dois amores, de duas almas, de dois corpos:

“Tudo o que é vida e vibra eternamente
É tu seres meu, Amor, e eu ser tua”

Mas o desengano nunca tarda:

“Procurei o amor que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Que terá acontecido quando a 7 de Dezembro de 1930,ocorreu a tragédia final? Uma neurótica que ingere uma dose suplementar de comprimidos ou uma mulher doente que os toma para se livrar da dor física e de todas as outras, bem piores, por certo. Ou não o soubéssemos nós, mulheres, que passamos a vida a discursar sobre a solidão, cumprindo sempre a paixão do poeta, que é a eterna paixão da dor.

“Ser poeta é ser mais alto, é ser maior Do que os homens! Morder como quem beija! É ser mendigo e dar como quem seja Rei do Reino de Aquém e Alem Dor!”

Serenidade

É absolutamente impressionante chegar a um estado de serenidade tão bom que apetece dizer: “ afinal era tão fácil, tão simples e tão possível estar feliz?”
É ainda mais impressionante chegar à conclusão de que foi num dia X que se ultrapassou uma linhazita que estava ali a ser um escolho no caminho, eliminando-se, sem esforço, com um passo apenas, a raiz de todos os constrangimentos.

Angústias, medos, tristezas, cóleras, inseguranças, dilemas, obsessões, hesitações, traições, humilhações… culpas, culpas, culpas…
Para quê?
…O maior desafio que a vida tem, afinal, é simplificar coisas que aparentemente são complicadas!
… E o maior segredo é ainda mais surpreendentemente acessível – o exercício do humor (sobretudo o supremo humor, que consiste em rirmo-nos de nós próprios).
Isto são pequenas reflexões, nada de grandioso, nada de espectacular, nada de maravilhosamente caído do céu. Pequenas reflexões que tenho feito, às vezes sem me dar conta, quer seja a meio do quilómetro 23 da auto-estrada, quer seja sentada à mesa a engolir a sopa do jantar ou a limar uma unha que arranha... para que não se pense que estou inundada de pensamentos literários.

Dantes, quando me falavam em sentido de humor, respondia sempre que não o tinha, que não me coubera nenhum pedacinho na distribuição feita à nascença. Efectivamente também eu reprimia o riso, como a religião faz aos crentes, disparando, de todas as direcções, culpas que se cravam violentamente na alma.
Vítima do espartilho ético, recusando-me a ultrapassar, com um ou outro passo mais largo, o risco circular traçado no chão à minha volta, carreguei fardos arruinando literalmente o suporte do corpo físico (as vértebras); arrastei culpas, expondo-me como que em exercício inútil de catarse; travei lutas de mim para comigo, desfazendo os restos de alguma desejada e desejável racionalidade.

Para quê, se o maior desafio que a vida tem é a simplificação!

“O simples facto de rir ajuda uma pessoa a relaxar. Quando alguém ri abertamente, este acto leva a uma descontracção generalizada dos músculos da face, pescoço, tórax, abdómen e diafragma, ao mesmo tempo que estimula o sistema cárdio-vascular e os pulmões”

Tudo tão simples, afinal:

- para as inibições sociais: descontrair os músculos e sorrir;
- para os desafios difíceis: arregaçar as mangas e sorrir;
- para as tentações de transgressão: dizer que sim a sorrir;
- para a tendência perfeccionista: dizer que não a sorrir;
- para as ansiedades: sorrir para refrear o ritmo e descontrair;
- para as reflexões angustiadas sobre aquele comportamento do
passado: sorrir, para aliviar o peso da lembrança;
- para aquilo que os outros dizem com ar censor: … apenas sorrir!

Falo de mim mesma


Falo de mim mesma:
Desconhecida, incógnita, evasiva,
Aquela que traz palavras
Dentro das mãos fechadas
E as pousa devagar
Revelando o segredo da crisálida
E o fascínio
Pelas margens da fantasia:


Falo de mim mesma
Na margem dos meus olhos
Abertos por dentro das madrugadas
De insónias finalmente resolvidas;
Transformo as palavras
Em convicções que não dizia
E sento-me no lugar onde as ondas se desfazem
À espera que o mar me conte segredos;


Falo de mim mesma
Depois de sufocar todas as iras;
Agora sim, de olhos abertos à vida
Embalada em todos os sentidos
Asas abertas, longas, leves, limpas
Em direcção aos pontos de fuga (e de retorno)
Evoco o Tempo
À espera das horas que hão-de vir;


Falo de mim mesma
Como se da terra outrora seca
Tivessem despertado as seivas
E o orvalho adormecido no silêncio
Tivesse também acordado
Sob o rumor da metamorfose.
Incógnita, ainda, sim,
Mas já voando sobre as cinzas
Crisálida desperta, com as mãos cheias de palavras
.